Alvo de dossiê diz que governo Bolsonaro “de novo atenta contra democracia”

Enviado por / FonteUOL, por Rubens Valente

O cientista político Luiz Eduardo Soares, 66, um dos alvos do dossiê produzido pelo Ministério da Justiça contra os policiais antifascistas e citado como “formador de opinião” do grupo, disse que recebeu a notícia com indignação. Para Soares, o governo Bolsonaro mais uma vez “atenta contra a democracia”.

O dossiê, cuja existência foi revelada pelo UOL nesta sexta-feira (24), foi produzido em junho por uma unidade pouco conhecida do ministério, a Seopi (Secretaria de Operações Integradas). O levantamento listou 579 agentes da segurança púbica estaduais e federais, alguns com fotografias e endereços de redes sociais, que haviam assinado dois manifestos, em 2016 e 2020.

O relatório sigiloso inclui um subtítulo denominado “Formadores de opinião”, no qual são citados Soares, o especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, o secretário estadual do Pará Ricardo Balestreri e o acadêmico da Universidade Federal da Bahia Alex Agra Ramos.

Em resposta à revelação sobre o dossiê, o Ministério da Justiça tem repetido que faz trabalho de inteligência e que a Seopi integra o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), formado por 42 órgãos públicos e centralizado no GSI (Gabinete de Segurança Institucional).

Formado em literatura, mestre em antropologia e doutor em ciência política, Soares foi secretário nacional de segurança pública do próprio Ministério da Justiça durante o primeiro ano do governo Lula, em 2003, e coordenador de segurança, justiça e cidadania do governo do Rio de Janeiro de 1999 a 2000. Ele tem 20 livros publicados, entre os quais a coautoria dos dois volumes de “Elite da tropa”, que deram origem aos dois filmes de grande sucesso comercial “Tropa de elite”. Soares foi também professor da Unicamp e do IUPERJ, além de acadêmico visitante em Harvard, Universidade de Virginia, Universidade de Pittsburgh e Universidade Columbia.

A seguir, a entrevista concedida ao UOL por email:

Como pessoalmente recebeu a informação de que é um dos alvos do dossiê feito pelo governo Bolsonaro via Ministério da Justiça?

[Criado em 1964, logo após o golpe militar, o SNI se notabilizou por perseguir e monitorar adversários do governo dentro e fora da administração pública, produzindo dossiês, informações e fichas individuais sobre os mais variados aspectos da vida nacional, das artes à política. Cada braço do governo federal, como ministérios, autarquias, estatais e fundações, criaram órgãos subordinados ao SNI, as Divisões de Segurança e Informação e Assessorias de Segurança e Informação. Seus dossiês eram distribuídos entre vários órgãos públicos durante a ditadura e serviam para prejudicar carreiras, interditar obras de arte e subsidiar IPMs, os Inquéritos Policias Militares, abertos pela ditadura contra cidadãos por supostas violações legais, incluindo a Lei de Segurança Nacional]

Como recebe a afirmação de que seria “formador de opinião” do movimento dos policiais antifascistas? Que livros e escritos de sua autoria citaria que poderiam ser de interesse dos policiais antifascistas. Como seu livro ‘Desmilitarizar’ tem repercutido entre os policiais antifascistas? 

Todo pesquisador e professor universitário que publica sua produção intelectual participa, potencialmente, da formação das opiniões de todos os segmentos sociais. Como boa parte do que pesquiso tem por objeto segurança pública, Justiça criminal e suas instituições, os profissionais dessas áreas naturalmente terão mais interesse em ler o que escrevo e ouvir minhas palestras do que os não especialistas. Como entendo que não faz sentido o que chamamos “segurança pública” sem a vigência do Estado democrático de direito, seria de se esperar que os profissionais das polícias, do MP, da Justiça e das áreas conexas que valorizam meu trabalho sejam, como eu, contrários às ditaduras e ao nazi-fascismo. Espero que todos os meus livros, não apenas o ‘Desmilitarizar’, sejam lidos e apreciados pelos cidadãos que se opõem ao nazi-fascismo e às ditaduras, inclusive os policiais.

Participou de debates e lives com policiais antifascistas nos últimos meses? Atribui a essas discussões o fato de ter se tornado um alvo do governo?

Desde o início da pandemia participei de 59 lives, com colegas e interlocutores brasileiros e estrangeiros, alguns são policiais, outros, não. Mas todos são contrários ao fascismo, até porque eu me recusaria a participar de uma live com cidadãos, policiais ou não, a favor do fascismo.

Como avalia o movimento dos policiais antifascistas, o que pretendem, eles de alguma forma representam ameaça à segurança pública?

O movimento é uma expressão extremamente positiva e demonstra que nem todos os profissionais que trabalham na segurança pública são insensíveis às questões democráticas e aos direitos humanos. A grande ameaça à segurança pública é a política inconstitucional, racista e brutal, responsável pelo genocídio de jovens negros e pobres nos territórios vulneráveis. Ameaça à segurança pública é a flexibilização do acesso às armas.

O que indica a descoberta desse levantamento do Ministério da Justiça?

Indica que as piores suspeitas sobre a recriação do SNI eram bem fundamentadas.

Esse episódio revela descontrole das atividades de inteligência no país?;

Não, pelo contrário: revela a tentativa de centralização por parte do governo federal e o direcionamento ideológico e político do foco de investimentos. Em vez de investigar as milícias, que proliferam e se fortalecem, o governo federal gasta recursos humanos e materiais para fazer guerrilha ideológica.

Como deveria ocorrer esse controle, quem deveria fazê-lo?

O governo está se aproveitando das indefinições legais, que decorrem das imprecisões sobre metas e atribuição de responsabilidades da PNI (Política Nacional de Inteligência), conforme o decreto 8.793, de 2016, e do Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 sobre a Estratégia Nacional de Inteligência. Marco Cepik e Renato Sergio de Lima têm chamado atenção para esse grave problema. É imperioso que o Congresso e os órgãos de controle judiciais assumam a iniciativa de proceder às definições, cada vez mais urgentes, e que o façam da perspectiva da transparência e da garantia de direitos.

Qual a diferença entre “inteligência na segurança pública” e outros tipos de serviços de inteligência, como o GSI e a ABIN? 

Uma visão contemporânea, efetivamente democrática e arejada, liberta a ideia de “inteligência” das sombras da espionagem, refúgio de todo tipo de ilegalidade e violação de direitos. Inteligência hoje deve ser vista como conhecimento, identificá-lo e colocá-lo a serviço de políticas públicas, com plena transparência e apoio das instituições da sociedade civil. Por exemplo: centros universitários e institutos de pesquisa já demonstraram à exaustão que incursões bélicas em favelas não reduzem criminalidade e provocam perdas, danos e risco, inclusive mortes de suspeitos, inocentes e policiais. Caberia à inteligência levar as evidências amplamente analisadas aos formuladores de política de segurança para que cessem de repetir os erros imensos que continuam a cometer, cujos efeitos, além da letalidade, são a reprodução do racismo estrutural e a intensificação das desigualdades.

Nos Estados está havendo descontrole da inteligência nas polícias Civil e Militar?

Nunca houve controle adequado na área de inteligência dos estados que, a rigor, cumpriria apenas à instituição civil, responsável por investigações. Essa área trouxe a marca deletéria do autoritarismo e da manipulação política, não raro tendo recepcionado egressos dos porões da ditadura. O fato é que a transição democrática não alcançou a segurança pública e o sistema prisional. Houve continuidade, não uma ruptura, o que nos fez herdeiros de estruturas organizacionais, culturas corporativas e práticas da ditadura.

 

Posição do Ministério da Justiça

Em nota divulgada na sexta-feira (24), o Ministério da Justiça e Segurança Pública assim se pronunciou sobre o assunto, na íntegra:

“O Sistema Brasileiro de Inteligência (instituído pela Lei nº 9.883/1999) é responsável pelo processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária ao processo decisório do Poder Executivo. A atividade de Inteligência de Segurança Pública é realizada por meio do exercício permanente e sistemático de ações especializadas para identificar, avaliar e acompanhar ameaças potenciais ou reais. O objetivo é subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio. Como agência central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública Como agência central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (Decreto 3695/2000), cabe à Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, como atividade de rotina, obter e analisar dados para a produção de conhecimento de inteligência em segurança pública e compartilhar informações com os demais órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência.”

 

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