Amarelamos

A cidade começou a imitar os devotos, até que o ritual de fé foi transformado em tradição cultural

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

O ano novo se apresentara havia 20 minutos, quando as duas mulheres saíram da praia e tomaram o rumo de uma transversal da Avenida Atlântica, no Leme. Era a primeira vez que Jaqueline e Gisele se vestiam inteiramente de amarelo para a virada. “É para chamar dinheiro”, confessou a primeira. A pedido da mulher, o porteiro José Carlos foi outro que vestiu a camisa amarela e saiu por ali, em ação mística para atrair fortuna. Não é exagero dizer que, na orla de Copacabana, cenário do réveillon mais famoso do país, uma em cada três pessoas esperou 2016 com figurinos da cor do ouro e da prosperidade. Em alguma esquina da vida, os brasileiros amarelamos.

Faz duas décadas, o país deu adeus à hiperinflação e, moeda forte nas mãos, o povo começou a abrir picadas na selva consumista. Na segunda metade dos anos 1990, frango, iogurte, dentadura entraram na cesta de compras das famílias, para nunca mais sair. A bonança anabolizou-se no novo século, com a política de valorização do salário mínimo, a multiplicação do emprego com carteira assinada e a avalanche de crédito a juros suportáveis.

O tripé do rendimento em alta, da confiança no mercado de trabalho e dos empréstimos abundantes resultou em recorde de venda de imóveis, carros, eletrodomésticos e eletrônicos, viagens de avião. Apenas em 2014, 3,333 milhões de automóveis novos foram licenciados no país, informou a Anfavea, associação das montadoras.

No ano passado, o vento virou. De janeiro a novembro de 2015, 945 mil brasileiros perderam o emprego formal. A taxa de desocupação voltou ao patamar de seis anos antes, em torno de 7,5%. A inflação, de dois dígitos, foi a mais alta desde 2002. O dólar subiu perto de 50%, os juros básicos passaram a 14,25%, e as taxas de financiamentos bateram estratosféricos 415% ao ano no cartão de crédito rotativo e 284% no cheque especial, segundo levantamento do Banco Central.

A insegurança financeira, o endividamento alto e o custo dos empréstimos inviabilizaram as compras a prazo; a inflação corroeu o poder de compra nas despesas básicas. No Produto Interno Bruto (PIB) acumulado em quatro trimestres até setembro de 2015, o consumo das famílias despencou 2,5%, o pior resultado desde 1996, início da série histórica do IBGE.

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, amarelar significa “perder a coragem diante de uma situação difícil, perigosa, embaraçosa”. Tempos atrás, amarelávamos, num sentido não dicionarizado, pela seleção canarinho, que derrotas vexatórias trataram de desmoralizar. A camisa oficial do escrete brasileiro passou a desfilar em manifestações políticas contra-tudo-que-está-aí.

É possível que a abstinência de consumo tenha empurrado os brasileiros para o réveillon amarelo. O antropólogo Rolf Malungo de Souza, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), atribui a coloração ao medo da falta de dinheiro. “Ouviu-se falar tanto em crise que o pessoal tentou se precaver. Como nós, no Brasil, creemos en brujas, amarelo nelas. Não acho que foi por consumismo, mas por medo”, reforça.

Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, que nos últimos anos se dedicou a estudar a nova classe média, enxerga na mística cor do ouro uma reação ao primeiro ano em que, após uma década, os brasileiros experimentaram o retrocesso. “As famílias percebem claramente que estão com menos dinheiro. Algumas tiraram filhos da escola particular e matricularam no ensino público, cortaram o curso de inglês, não puderam viajar. O desejo do ano novo de prosperidade tem a ver com manter o padrão de vida e construir o futuro. Não querem dinheiro para guardar, como o Tio Patinhas, mas para comprar a casa própria, se qualificar para o mercado de trabalho”, opina.

A festa de réveillon como conhecemos no Brasil começou a ser esboçada em meados do século passado. Devotos da umbanda e do candomblé, no último dia do ano, visitavam as praias cariocas para entregar presentes e fazer pedidos a Iemanjá, orixá da água salgada. Vestiam-se de branco, depositavam oferendas na beira do mar, acendiam velas na areia, tocavam atabaques, cantavam e dançavam em reverência às divindades das religiões de matriz africana.

A cidade começou a imitar os devotos, até que o ritual de fé foi transformado em tradição cultural. Foi assim que o Rio passou a usar roupas brancas, cor da paz, na virada para o 1º de janeiro, data dedicada à Confraternização Universal. Ainda que amparados pela insegurança de uma crise econômica aguda, um país que degola bebê indígena, mata jovens negros aos milhares, violenta meio milhão de mulheres por ano não pode trocar paz por prosperidade. Esta não é possível sem aquela.

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Luto pela morte precoce de Antônio Pompêo, para sempre Zumbi dos Palmares.

 

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