American Son: i can’t breathe.

Eis a última oração dita no filme American Son. Sem coincidências, foi também o pedido de socorro pela própria vida do afro-americano George Floyd, 46 anos, no dia 25.05.2020, antes de ser assassinado e tornar-se mais uma vítima da necropolítica promovida pela supremacia branca/ capitalista/ patriarcal [1]. Afinal, quem são os filhos da América que não tem direito ao respirar?

Costumamos ouvir que: a vida imita a arte. Mas, não é recente o fato que produções artísticas, e especificamente as cinematográficas, têm utilizado as artes para denunciar as condições opressoras que algumas vidas são submetidas, ao mesmo tempo que nos apresentam dados de histórias que não foram contadas ou tiveram ampla divulgação de modo que: a arte desmascarando à vida. É nesse grupo que situamos o filme American Son.

American Son é um “evento televisivo da Netflix”, estreado em 1° de novembro de 2019. Produzido sob a direção de Kenny Leon e no elenco: Kerry Washington; Steven Pasquale; Jeremy Jordan; Eugene Lee. O longa foi baseado na peça homônima e conta com a mesma direção e elenco da versão na Broadway

Uma hora e trinta minutos foi transformada numa longa madrugada, na sala de uma delegacia, em que  somos envolvidos pela história de uma mulher e mãe negra, professora da Universidade de Miami, Kendra Ellis- Connor, em busca de notícias do filho negro desaparecido, Jamal, fruto de uma relação interracial com um agente branco do FBI, Scott Connor. No ambiente minimalista, apenas o som contínuo da chuva constante que nos lembra as lágrimas das mães negras das diásporas africanas. 

A sala da delegacia tornar-se no microcosmo do sistema de dominação e submissão que estrutura a sociedade estadunidense: o racismo. Um lugar  claustrofóbico, agoniante e de constante tensão para Kendra, que tem que lidar com os diversos tentáculos desse sistema: o desespero de ser mãe de um menino/jovem negro na América;  o racismo cotidiano presente  na família  interracial; o racismo institucional expressado tanto na burocracia e descaso de um policial branco que oculta  informações, mas que devido ao pacto narcísico da branquitude e a irmandade entre distintivos, é solicito e dispõe informações a Connor,  quanto na delicada situação de lidar com um policial negro que a questiona se ela educou o filho negro para sobreviver na América; o legado  de ser a única naquela sala  que reafirma e respira a mensagem que “a história e as vidas negras importam” enquanto menciona nomes, acontecimentos históricos e questiona a supremacia branca. Para o expectador, o filme prende à atenção ao mesmo tempo que provoca a sensação da necessidade de respirar. 

 Literalmente, não é tarefa fácil analisar a complexidade dos debates suscitados na película e não é a finalidade do texto promover. São sobre as histórias evocadas pela personagem de Kendra que desejo escrever. Em certo momento do enredo, Kendra explica para  Connor que  Jamal está passando pelo processo de despertar da consciência da sua cor e que, apesar  da experiência de ter vivido num ambiente de privilégio e cercado por maioria de pessoas brancas, ele não esteve imune ao racismo, tornando-se o  único representante da raça negra entre seus amigos. Ao afirmar que: “toda vez que acontece, ele sente o cerco se fechar para ele (…) quando esses homens são mortos, ele sente os fantasmas deles”, ela cita os nomes de: Philando Castile; Eric Garner; Tamir Rice. Em outro momento cita o nome de Arthur McDuffie. Para os expectadores norte-americanos, talvez, nomes e casos seja de conhecimento público. Todavia, para os expectadores brasileiros, provavelmente, não. Então, falarei brevemente sobre estas histórias. 

Arthur McDuffie: Homem afro-americano de 33 anos, trabalhava como agente de segurança. Em dezembro de 1979 foi espancado por policiais de Miami, Ira Diggs, William Hanlon, Michael Watts, e Alex Marrero, o que causou a sua morte. Na versão dos policiais, a perseguição a McDuffie foi devido uma ultrapassagem do sinal vermelho com sua motocicleta e durante a perseguição McDuffie sofreu um acidente. Na tentativa de fuga, os policiais entraram em luta corporal com ele. O relatório do legista concluiu que ele havia sofrido múltiplas fraturas de crânio e portanto, foi espancado. No julgamento, os policiais foram absorvidos das acusações de homicídio, bem como de adulteração ou fabricação de evidências. A absolvição provocou as manifestações em maio de 1980 no centro de Miami, em que mais de 5 mil pessoas foram as ruas. Os protestos continuaram por dias consecutivos e se espalharam por diversas cidades.  No final, havia 18 mortes, 350 pessoas feridas, mais de 600 detidas e os incêndios, roubos e saques causaram um “prejuízo” de mais de 100 milhões de dólares. Em 17 de Novembro de 1981, o Condado de Miami pagou a família de McDuffie um acordo de US $ 1,1 milhões.  

Philando Castile: Homem afro-americano, 32 anos, era supervisor em uma cafeteria. Em junho de 2016, foi morto a tiros pelo policial, Jeronimo Yanez, de ascendência latina no estado de Minnesota. Castile teve o carro parado porque a lanterna traseira estava quebrada, e enquanto pegava a carteira de motorista foi baleado. Segundo sua namorada presente no momento, ele informou ao oficial que tinha licença para portar arma e que havia uma no carro, após a informação o policial efetuou os quatros disparos. No carro ainda estava a filha de 4 anos. A namorada de Castile transmitiu ao vivo as consequências dos disparos. O policial envolvido foi afastado e o caso ainda não foi julgado. 

Tamir Rice: Adolescente afro-americano, 12 anos, estudante. Em 22 de novembro de 2014 foi assassinado na cidade de Cleveland por tiros disparados pelo policial branco Timothy Loehmann de 26 anos. Tamir estava brincando no parque com uma arma de brinquedo quando foi baleado. Os policiais alegaram que receberam uma denúncia de que um homem estava armado no parque e mirando a pistola para pessoas aleatórias. Ao chegarem, solicitaram que o adolescente mostrasse as mãos e parecia que ele estava tentando sacar, foi quando o policial efetuou os disparos acertando-o. Os policiais não prestaram socorro à vítima, foi um agente do FBI que estava na região e prestou os primeiros socorros. Um vídeo sobre o incidente divulgado dias após, mostrou que os policiais não haviam parado o veículo, quando o adolescente foi alvejado. Vários meses depois, o caso foi levado ao grande júri que decidiu não indiciar o policial. Um vídeo divulgado em 2015 mostrou que a irmã de Rice de 14 anos foi algemada e colocada no carro de patrulha ao tentar ajudar o irmão dois minutos depois dos disparos. Um processo movido contra a cidade de Cleveland pela família de Rice foi posteriormente resolvido por US $ 6 milhões. 

Eric Garner: Homem afro-americano, 46 anos. Em julho de 2014 foi a óbito quando o policial, Daniel Pantaleo o estrangulou enquanto tentava prendê-lo. A situação teve origem com a suspeita que Garner estava comercializando cigarros ilegalmente e ao ser abordado, ele afirmou que estava cansado de ser molestado pela polícia e negou a acusação. Ao ser dado voz de prisão, os policiais tentaram conter Garner no chão e ao ser estrangulado repetiu onze vezes: “eu não consigo respirar”. Depois que Garner perdeu a consciência, os policiais o viraram para “facilitar” a respiração. Durante mais de 7 minutos ele permaneceu deitado no chão e nenhum dos policiais tentou reanimá-lo. Foi declarado o óbito no hospital, uma hora depois de toda situação O laudo do legista concluiu que a causa da morte foi: compressão do pescoço, compressão do peito devido a posição que foi submetido durante a contenção física dos policiais. Houve também gravações da situação por civis. Em dezembro de 2014, o grande júri do Condado de Nova York decidiu não indiciar os policiais pelo crime, o que ocasionou uma onda de protestos públicos e comícios com a denúncia da brutalidade policial. Até o final de dezembro mais de 50 manifestações foram realizadas por todo o país.  Em 13 de julho de 2015, um acordo foi anunciado e a Cidade de Nova York indenizaria a família Garner em US$5,9 milhões.

Notório que tais acontecimentos inspiraram a produção do espetáculo teatral/ filme American Son. Entretanto, é preciso pontuar que a frase “eu não consigo respirar” no final do filme é dita pelo pai de Jamal, Connor, o homem branco americano e agente do FBI. Será que a opção de colocar essas palavras para serem proferidas por este personagem pode representar um alerta que a América poderá sufocar a qualquer momento com a violência produzida por ela mesma? Que é preciso admitir que a supremacia branca/ capitalista/ patriarcal é o grande problema e que essa estrutura social não deu certo? Que o sonho americano da felicidade e do direito, para alguns, é   uma grande mentira? Que se esse ciclo de violência e brutalidade continuar, ninguém mais terá o direito a respirar? 

Sem justiça para os descendentes das diásporas africanas na América, jamais haverá paz nesta terra. 

 

[1] bell hooks explica que recorreu a utilização dessa expressão (conjunto de conceitos) para ter uma linguagem que evocasse continuamente dos sistemas interligados de dominação que definem nossa realidade. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=t76kj2WrxsI

Fontes: 

http://www.umes.org.br/index.php/noticias/15-noticias/767-tamir-rice-12-anos-foi-sepultado-em-cleveland-depois-de-ser-morto-a-tiros-por-um-policial-racista

https://www.bbc.com/news/world-us-canada-36732908

https://www.bbc.com/news/world-us-canada-49399302

https://www.wlrn.org/post/forty-years-after-arthur-mcduffie-was-killed-miami-dade-police-his-family-honored-ceremony

 

 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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