Ancestralidade em Movimento

Quando nascemos, possuímos em nossos corpos a possibilidade de todos os movimentos experimentados por outros seres humanos e, ainda, o imponderável.

Somos abertos aos diversos vocabulários presentes no mundo e permeáveis às observações do mover de outros bichos, objetos e forças da natureza.

Em que momento então, passamos de um universo de encontros, criações e descobertas para um estado de corpos mudos, fragmentados e inexpressivos? O que nos faz perder o caminho de conexão com aquilo que somos corporalmente? Qual linha se rompe entre do corpo infantil que descobre e desafia o mundo dado através da imaginação e invenção de novos mundos possíveis e o corpo que já não sabe mais de si nem tão pouco do mundo que o cerca?

Respostas várias, tantas quanto as histórias de vida que por fim nos leva a um estado de corpos utilitários, transportados, desejados, alimentados, adoecidos, emagrecidos, espetacularizados, entorpecidos, rejeitados, medicados, ausentes.

Quando falamos corpos falamos sujeitos, subjetividades forjadas em uma relação empobrecida com aquilo que as constitui, qual seja, sua materialidade corpórea. Pois, ainda que as aspirações de transcendência espiritual ou a descorporificação da realidade virtual possam fazer parte de diferentes lógicas de existência e de pensar a si mesmo no mundo, ainda nascemos e morremos enquanto seres corporais.

De que modo podemos então reencontrar algo que talvez nem tenhamos de fato vivenciado? Não queremos, de maneira utópica, supor que este estado de conexão plena esteja perdido em um passado idílico, nem tão pouco que a criança seja sua guardiã. Sabemos que a cultura da infância se insere no mesmo contexto social no qual estamos imersos e que o revisitar de tempos idos nos oferece múltiplas leituras, mas nenhum retorno via máquina do tempo.

Então, arrisco dizer que a arte, em suas múltiplas possibilidades, pode oferecer um caminho interessante e que, mais especificamente, as manifestações artísticas que envolvem o corpo em sua potência expressiva podem apontar encruzilhadas que, antes de responder questões, oferecem fios para novas tramas que tecerão os entendimentos corporais de cada sujeito com sua própria existência corpórea.

Não digo arte, enquanto objeto espetacular do se fazer ver, mas a arte como lampejo criativo da condição humana. Como a força transgressora capaz de comunicar pelo sensível algo indizível.

Acredito que este poder titânico está presente em todos, mas que podemos atravessar uma vida sem experimentá-lo ou mesmo reconhecê-lo em nós mesmos ou no outro.

Ouro naufragado, perdido em um oceano de controles sociais, medos e autocrítica severa, nossos corpos permanecem como um espaço pouco explorado e cerceados em suas possibilidades.

Talvez, para fazermos submergir este tesouro tenhamos que ampliar nossa lógica de entendimento das coisas. Dar lugar ao dançar sensível e múltiplo da diversidade, ao mover que se conecta ao exercício de encontrar espaços, linguagens, limites e desafios, encontrar cores e traçados no lugar de formas vazias. Escutar e fazer falar as vozes de muitos que já foram, dar movimento a nossa ancestralidade.

Este diálogo não é religioso em um sentido mais estrito da palavra, mas, sagrado. Com ele experimentamos o encontro de mundos, de histórias, de povos, das relações com a vida que foi lenta e pacientemente talhando o que percebemos como nosso corpo.

Então, saia desta cadeira e encontre o seu mover, sua dança ancestral, pinte, faça música, escreva poesia com seu corpo, dê a ele a voz e a respiração. Se por fim, isso não trouxer grandes revelações ou encontros inusitados, ao menos terá sido verdadeiro.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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