Ainda me lembro do dia em que vi Lélia Gonzalez pela primeira vez. Foi em 1988, na sede do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), órgão do movimento negro fluminense, no Rio de Janeiro.
O IPCN foi palco de uma grande mobilização convocada pelo presidente da entidade, o fotógrafo Januário Garcia Filho, para atender moradores vítimas das fortes chuvas que arrasaram toda a cidade —especialmente os subúrbios cariocas— deixando centenas de desabrigados, mortos e feridos.
Lélia Gonzalez foi uma das lideranças negras participantes da reunião com o grupo que buscava uma solução para minorar os efeitos causados pelo temporal que tinha deixado a cidade em situação dramática.
Uma organização francesa de nome “SOS Racisme” —dirigida pelo ativista Harlem Désir, acionado do Brasil— resolveu ajudar financeiramente no socorro às vítimas cariocas. Désir, conhecedor do país onde esteve por duas vezes, foi um aliado de primeira hora e sua presença por aqui influenciou na criação de órgãos congêneres: no Rio, na iniciativa de Marcos Romão, em São Paulo, de Sueli Carneiro, e em Salvador, através de João Jorge Rodrigues.
Lélia Gonzalez participou das principais ações de 1988, ano do centenário da abolição da escravatura marcado por manifestações e passeatas. Nossa ativista completou 90 anos agora em fevereiro, mas nos deixou em 1994. Sua morte impactou o movimento negro, sobretudo as mulheres negras.
No contexto de suas falas e escritos estão abordagens sobre feminismo negro, juventude e desemprego, contracultura, racismo e sexismo. São seus os conceitos de “amefricanidade” e “pretuguês”; espécies de dialetos que definem padrões e negritude. Gonzalez, filósofa e antropóloga, antecipou debates públicos sobre consciência negra que ajudaram na construção dos parâmetros que ajudaram a formular as políticas de ações afirmativas no Brasil, como as cotas nas universidades e no serviço público.
No seu livro “Por Um Feminismo Afro-Latino-Americano” —coletânea inédita e póstuma organizada por Flávia Rios e Márcia Lima— Gonzalez, enquanto articuladora, questiona a falácia da democracia racial brasileira e exalta a importância do papel das mulheres negras na luta por igualdade de direitos numa sociedade fundada na base do patriarcado e do colonialismo. Ela também acerta ao afirmar que o “mito da democracia racial funciona nos níveis público e privado”, ou seja, como fundamento do aparelho repressivo do Estado.
Questões de raça e de gênero foram pautas defendidas nos embates empreendidos por Gonzalez na ordem de sua militância precursora. Muitos dos seus escritos são partes das formulações que postulou quando tentou, sem sucesso, um mandato no parlamento.
Esta foi a intensa Lélia Gonzalez que conheci nos idos das décadas de 1980 e 1990, ouvida e lida no público e no privado. Trazê-la para essa revisita, projetá-la aos olhos da sociedade atual —de maioria negra, que sobrevive sob os mesmos dilemas que combateu— é promover e valorizar o seu legado, sua história e suas conquistas enquanto pensadora e intelectual.
Tom Farias – Jornalista e escritor, é autor de “Carolina, uma Biografia” e do romance “Toda Fúria”