Apesar de maioria dos empreendedores no país, negros faturam menos no comércio

Para especialistas, fatores como racismo e machismo são decisivos nessa desigualdade

Por Matheus Rocha, do Época 

A população negra é o grupo que mais abre novos negócios no Brasil, mas é aquele que menos fatura. De acordo com o Global Entrepreneurship Monitor de 2017, pesquisa realizada em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), negros correspondem a 51% dos empresários do país, porém formam apenas 1% daqueles que ganham de R$ 60 mil a R$ 360 mil e totalizam 60% dos empreendedores que não lucram nada. Para mulheres negras, no entanto, manter empresas de pé pode ser uma tarefa especialmente desafiadora.

Segundo Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta – o maior evento de produtos negros da América Latina – elas precisam lidar de uma só vez com o racismo e o com o machismo. “Essa relação entre raça e gênero é o primeiro desafio. E, quando comecei, tinha ainda a questão da idade. Quando ia contratar fornecedor, eles não me respeitavam. Na negociação com patrocinador, sentava para esperar a pessoa e ela me perguntava se a Adriana tinha chegado, então precisava dizer que era comigo que eles iam negociar”, disse ela, após participar do Festival Mulheres do Mundo na última sexta-feira (16), realizado no Rio de Janeiro.

Para superar essas sutilezas do preconceito, Barbosa buscou especialização com frequência, mostrando nas reuniões que tinha bagagem técnica para levar um empreendimento adiante. Aos poucos, esses esforços foram reconhecidos e, em 2017, ela foi eleita uma das 51 pessoas negras mais influentes do mundo pela organização Most Influential People of African Descent. “Isso significa o reconhecimento de um trabalho árduo de pautar o desenvolvimento econômico da população negra. Ter esse reconhecimento ajudou a reposicionar a Feira Preta no Brasil. Hoje, ela começa a ser reconhecida no país todo, e não apenas na comunidade negra.”

Empreender, porém, nem sempre foi a primeira opção de Barbosa. Ela conta que embarcar no mundo dos negócios foi a forma que encontrou de fugir do desemprego. “Estava em um contexto de falta de grana mesmo, não conseguia me inserir no mercado de trabalho formal, então comecei a vender minhas roupas em brechós. Só que eu vendia hoje para comer amanhã.” Ela decidiu então criar a Feira Preta como alternativa a esse tipo de negócio e, além disso, usou o projeto para alavancar a empresa de outros afroempreendedores.

A profissional diz que empreender na lógica da necessidade, isto é, por não encontrar inserção em trabalhos formais, é algo recorrente entre a população negra. De acordo com ela, o fenômeno teria suas raízes em uma abolição da escravatura que não privilegiou o acesso dos libertos ao mercado formal de trabalho. “Empreender para os negros sempre foi uma forma de sobrevivência. A gente empreende há pelo menos 130 anos. Mas, depois da escravidão, as populações negras não receberam qualquer forma de reparação, diferentemente dos imigrantes italianos que receberam do Estado terras e condições para se desenvolver.” Como resultado, disse ela, a população afro-brasileira precisou lançar mão da criatividade e de saberes ancestrais para conseguir sobreviver. “Temos uma forma peculiar de empreender, e nós fazemos por vocação. Está em nossa natureza.”

Já para a empresária e criadora de conteúdo Ana Paula Xongani abrir um atelier de moda surgiu como uma oportunidade. No final da faculdade, ela viajou a Moçambique para pesquisar sobre moda negra, assunto pelo qual se interessou durante a graduação. Do país africano, Xongani trouxe tecidos e planos para fundar com sua mãe um atelier voltado para moda afro. Para ela, mulheres negras empreendem tanto por necessidade quanto por oportunidade, mas salienta que as duas modalidades têm igual importância. “Tanto uma coisa quanto outra são levantes de criatividade. Isso é importante porque dá à mulher negra formas de sustentar suas famílias e suas ideias.”

Foto: Adriano Vizoni/ Folhapress

Assim que decidiu abrir seu próprio negócio, ela lembra ter enfrentando dificuldades ligadas à raça e ao gênero. Somado a isso, a questão de classe se fazia presente por morar na periferia de São Paulo. De acordo com ela, o desafio é triplo, mas acaba sendo combustível para seu ofício. “Ser mulher é algo que se traduz em meu trabalho na moda. Ser preta me faz ter um diferencial dentro do mercado. Além disso, estar na periferia e valorizar meu território acabou se transformando em minha grande potência.”

Xongani e Barbosa apostaram em uma parcela do mercado que tem se tornado cada vez mais lucrativa. De acordo com o Instituto Locomotiva, pessoas negras movimentam mais de R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil. Caso fossem um país, seriam a 17 º nação que mais consome no mundo. Apesar disso, o lucro que nasce do poder de compra do negro continua concentrado quase exclusivamente em mãos brancas. “O motivo disso”, explica Xongani, “sem dúvidas é o racismo estrutural. A maioria das pessoas negras que empreendem não tem acesso a crédito e não são vistas enquanto empresárias.”

Suzana Mattos, analista de projetos do Sebrae-RJ, faz coro à opinião da empresária e acrescenta: “O microempresário negro tem as mesmas dificuldades técnicas que um empreendedor branco tem, como acesso a crédito. Mas, no nosso caso, existe um dificuldade adicional, que é o preconceito.” Segundo a especialista, esse preconceito não raro recai sobre os produtos comercializados por essa parcela da população, o que pode dificultar em até três vezes o acesso ao crédito. Já aos olhos de Cristhiane Malungo, integrante do Fórum Estadual de Mulheres Negras, fenômenos como esse são reflexo de desigualdades sociais que acabam contaminando o mundo dos negócios.

A pedagoga diz ainda que empreender não é novidade para mulheres negras. “Elas sempre trabalharam. Sempre estiveram fora de suas casas, de forma forçada ou não.” Malungo destaca que, durante o regime escravocrata, essas mulheres trabalhavam para conseguir comprar não só sua liberdade, mas também a de familiares. Por vezes, elas não cumpriam devidamente as ordens que lhes eram impostas só para que seu “preço” caísse, facilitando a compra da alforria. “A mulher negra teve papel central durante a escravidão. Ela não era submissa, mas aquela que se organizou e fez a diferença em nossa história. Não estou descartando o papel dos homens negros, mas é importante também dar visibilidade à mulher negra”, salientou Malungo.

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