Mesmo exausta após um plantão de 12 horas, lavo as louças do jantar. É olhar a pia e ver vovó Maria com o dedo em riste: “Aprenda, de uma vez por todas, aqui em casa não dorme louça suja!”. É um conforto chegar cansadíssima e encontrar a pia da cozinha limpinha.
Por: Fátima Oliveira
No sertão, jantávamos na “boquinha da noite”. Muitas vezes, meu avô não havia chegado do curral, então as louças do jantar dele não eram lavadas pela Albertina, a cozinheira, mas por mim. Naquela noite, eu queria ficar de mutuca na calçada. Após pai velho jantar, arrumei as louças sujas numa bacia, ao lado do fogão à lenha. Mal me sentei na calçada, vovó puxou-me pelo braço.
Na cozinha, bradou: “Primeiro a obrigação, depois a devoção. Aprenda, de uma vez por todas, aqui em casa não dorme louça suja!”. Nem pia, nem água encanada. A água do pote de “lavar vasilhas” era gelada àquela hora. Frio de julho no sertão dói nas “juntas”. Abanei as brasas do borralho para esquentar a água. Abri a janela do lavatório – jirau de madeira, com uma gamela. Resumo da ópera: a lição de não deixar “dormir” louça suja é aplicável a quase tudo o que faço.
No imbróglio dos médicos estrangeiros, o entrave é a montanha de louças sujas “dormidas”: de séculos de abandono da assistência à saúde nas periferias metropolitanas e no Brasil profundo ao desrespeito às leis trabalhistas. Servidor público deve ser concursado. Os governos oferecem contrato, admitindo a precarização do trabalho como regra. É a institucionalização do “fazer cortesia com o chapéu dos outros”!
Rememorando vovó, que resistia a se consultar com “um doutor que não falava nada com nada”. Com cefaleia e vômitos por dois dias, no hospital foi taxativa: “Não quero aquele doutor que não fala nada com nada”. Era um médico boliviano, a simpatia em pessoa, mas, apesar de anos em Imperatriz (MA), só arranhava o português.
Era um hilário e irritante diálogo. Ela falava, eu traduzia. O que ele dizia, eu traduzia. E a consulta seguia, aos trancos e barrancos, evidenciando que a riqueza dos dialetos do português brasileiro é um fato a não desconsiderar nos serviços de saúde, pontuando que o “pt-BR” – código de língua para o português brasileiro –, embora de grafia culta una, é um conjunto de variantes de modos de falar, alguns de difícil compreensão até para brasileiros letrados.
Sou um monumento vivo dos sem-identidade linguística. Sertaneja maranhense, morei em São Luís durante dez anos. O “português da ilha” tem manhas e artimanhas! Na Atenas brasileira, há um modo ludovicense de falar. Em Belo Horizonte, é abrir a boca que indagam: “De onde você é?”. A minha fala é estrangeira em todos os lugares, pois ninguém se reconhece nela, nem maranhenses nem mineiros!
Em “A origem de classe é eterna”, escrevi: “A minha avó Maria, que adora ‘se consultar’, acha que, além de burros, os médicos não sabem de nada. São burros porque, quando ela vai se consultar, precisa levar alguém que traduza para eles o que ela diz. E não sabem de nada, ‘porque, se doutor fosse mesmo sabido, não morria'” (O TEMPO, 28.8.2002). Em “O direito humano ao remédio”, registrei: “Relembro a minha infância no médio sertão do Maranhão, onde não havia atendimento médico. Dizia vovó: ‘Se precisar vê o dotô for condição pá entrar no céu, pois fique sabendo que vai tudo pro inferno’. Vida dura, de total abandono do poder público” (O TEMPO, 10.9.2003).
E é um abandono de séculos que, por pura má-fé, tentam imputar aos médicos. Mas quem deve lavar as louças sujas são os governos.
Fonte: O Tempo