Aquela que volta

Já me confundo se o Rio é a ida ou a volta, se Luanda é a partida ou a chegada. Penso nos versos de Agostinho Neto: ‘já não espero, sou aquele por quem se espera’

Eu tive grandes sortes este ano, encontros até prováveis, mas quase impossíveis. Um deles foi dividir o mesmo espaço-tempo e palco com Leda Maria Martins, Tiganá Santana e Kalaf Epalanga. É curioso como num dia você está na sua cama, lendo despretensiosamente “Tempo espiralar”, e no outro você está cantando junto com a Rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Eu só agradeço!

Na verdade, o privilégio foi duplo, porque a primeira conversa aconteceu em Luanda e a segunda, no Rio, na Flup 2024. Uma viagem de levar e trazer Notícias Poéticas, procurem saber.

Falando em ir, tanto em nossa conversa em Luanda quanto no Rio, Leda citou um provérbio angolano, transcrito por António de Assis Júnior, no livro “O segredo da morta”: “Aquele que vai e volta não é o que vai, mas o que volta.”

O provérbio explodiu minha cabeça porque, como sabem, eu estou há sete anos indo e voltando. Já me confundo se o Rio é a ida ou a volta, se Luanda é a partida ou a chegada. Penso sempre nos versos de Agostinho Neto: “Eu já não espero, sou aquele por quem se espera.” Tenho o privilégio de ter gente à minha espera em ambos os portos, aliás, aeroportos.

Ainda assim, sempre que volto (para o Rio), eu não sou mais aquela que foi. E rever esta cidade de novo, de novo e de novo, escancara tudo de melhor e pior que temos. Tudo anda tão precário, torto e cada vez mais caro, mas ver o sol refletido nas folhas das amendoeiras da rua dá a sensação de que nem tudo está perdido.

Eu devo admitir que sinto falta de ouvir o “s” sibilar. E sorrio com as atendentes das lojas, que nunca me viram na vida mas me chamam de “meu amor”, quase me lembrando das vendedoras de Luanda, que me chamam de “minha bonita”. Coisas simples me deixam feliz, como os motoristas dos ônibus que me sorriem quando abrem a porta.

Eu estava quase gostando do Rio, mas tudo mudou no domingo, quando levei meus sobrinhos ao shopping. Meu sobrinho mais velho já tem quase 15 anos. É um adolescente lindo, já mudou de voz, mas continua com a doçura de sempre. Está cheio de espinhas e ostenta um cabelo black power, com o “pezinho” na régua. Assiste a doramas e animes, joga on-line, lê mangás e passou metade do nosso passeio ouvindo os amigos no Discord.

Meu sobrinho mais novo tem 10 anos, fala o tempo inteiro, lê todos os letreiros e placas. Disse que o slogan de uma loja de tintas mentia, porque estava escrito que tinha todas as cores, mas, segundo ele, faltavam o marrom e o cinza. Ele me mostrou seus álbuns de figurinha e fez questão de me explicar o mundo. Me apresentou o Rio de Janeiro, porque ele sabe que eu vivo fora e, na cabeça dele, não devo saber como as coisas funcionam na cidade. Eu deixei que ele me dissesse tudo.

E tudo seria lindo como um domingo de sol no Rio se meus sobrinhos não fossem dois meninos negros. Ainda que eu fizesse questão de deixá-los à vontade no restaurante em que almoçamos, na padaria em que comemos a sobremesa e na livraria que visitamos, todo o restante do mundo fazia o contrário. Eu e meus sobrinhos éramos olhados com estranheza, como se aquele não fosse o nosso lugar. Ainda pior, os olhos virados para eles eram um olhar de periculosidade, como se, ao vê-los, a sirene de “lutar ou correr” fosse ligada nas pessoas.

Foi ali que me vi visivelmente como aquela que volta, porque Luanda me ensinou a lidar com o racismo com uma altivez que nunca tive, a devolver o olhar e o incômodo, a entender que todo lugar em que eu quiser estar é lugar para o meu corpo. Porque o que é o corredor de um shopping para mim, que atravesso um oceano?

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