As heranças da escravidão ainda sustentam as elites políticas do Brasil

Enviado por / FonteUOL, por André Santana

É muito comum ouvir de brasileiros em visita a igrejas, castelos e palácios da Europa que aquela riqueza foi resultado da exploração dos recursos do Brasil e do trabalho forçado de pessoas escravizadas.

Quanto a isso, não restam dúvidas. O que muitos não associam é que o processo de colonização e de escravidão também gerou no Brasil uma elite econômica que ainda hoje vive os privilégios herdados das suas famílias escravocratas, constituindo também o poder político impregnado nas instituições que conduzem o país.

O pior é que esses herdeiros do colonialismo ainda tentam manter relações de poder e acumulação de dinheiro por meio de práticas semelhantes aos seus antepassados, a exemplo dos trabalhadores ainda mantidos em situações análogas à escravidão.

Uma recente reportagem da Agência Pública sobre o legado escravocrata na política brasileira mostrou que poderosos políticos, como senadores, governadores e até ex-presidentes, pertencem a famílias que historicamente estiveram envolvidas de forma direta com a escravidão.

O veículo também destacou as recentes ocorrências de trabalho escravo denunciadas em propriedades de alguns desses mesmos políticos, confirmando o empenho dessas famílias em manter seus patrimônios a partir da mais cruel forma de exploração do trabalho humano.

Escravizadores se adaptaram às instituições democráticas

Muitas das famílias que lideram a política e os negócios no Brasil hoje têm suas origens diretamente ligadas à escravidão. Eles foram responsáveis pela formação de grandes latifúndios, especialmente no Norte e no Centro-Oeste do país, onde a produção agrícola, como a cana-de-açúcar, o café e o algodão, era mantida pelo trabalho escravo em grande escala.

O mais impactante é como esses grupos buscam manter e ampliar sua influência ao longo dos séculos, não apenas no setor econômico, mas também nas instituições políticas e nos governos. O domínio dessas famílias e a permanências dessas práticas são um reflexo claro da maneira como o país nunca rompeu completamente com os alicerces do sistema escravocrata.

Esses grupos de poder se adaptaram aos novos tempos, integrando-se às estruturas republicanas, militares, empresarias e, mais recentemente, ao sistema democrático, criando uma rede de relações que garantiu sua permanência e influência em diversas áreas de decisão.

Muitos desses nomes continuam em cargas de alta relevância, incluindo os mais altos postos da política nacional, reforçando a ideia de que o Brasil nunca teve, de fato, uma ruptura profunda com os princípios do colonialismo.

O especial Escravizadores, da Agência Pública, traz o levantamento de que metade dos presidentes brasileiros desde o fim da ditadura, quase metade dos atuais governadores dos estados e um quinto dos senadores em exercício, têm antepassados diretos que teriam pessoas escravizadas, utilizaram mão de obra escravizada ou atuaram para conter revoltas de pessoas negras e pobres durante o Brasil colonial e no Império.

Direitos trabalhistas atacados por herdeiros da escravidão

O protagonismo das elites brasileiras na exploração escravocrata e toda herança ainda preservada por essas famílias ajudam a entender a dificuldade de avançar no país ações efetivas de combate ao racismo e também de respeito aos direitos dos trabalhadores.

Dominando as decisões sobre as leis, os representantes dessas famílias se empenham em legislar à favor dos seus próprios patrimônios ou de outras famílias também beneficiadas diretamente pelo passado colonial. Já há uma farta pesquisa histórica a comprovar como a escravidão é fator estrutural de formação das elites econômicas do Brasil e podemos ver agora como esse poder penetra no sistema político.

Os exemplos que confirmam a resistência dessas famílias em alterar as bases coloniais baseadas na escravização são inúmeros como a demora em proteger da exploração as trabalhadoras domésticas que, somente há dez anos, tiveram efetivamente seus direitos igualados aos dos demais trabalhadores brasileiros.

Somente com a PEC das Empregadas Domésticas, aprovada em 2013 e regulamentada dois anos depois, foram asseguradas garantias básicas como a jornada máxima de trabalho, descanso, seguro desemprego, obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por parte do empregador, entre outros direitos.

Reforma trabalhista e jornada 6×1 prejudicam trabalhadores

Já a Reforma Trabalhista de 2017, proposta e aprovada por esse sistema político dominado por representantes das famílias escravocratas, agravou a precarização e insegurança dos trabalhadores brasileiros. Ao flexibilizar as relações trabalhistas, na justificativa de gerar mais emprego, as novas leis permitiram o aumento das terceirizações, da ausência de vínculos e responsabilidade dos empregadores e a informalidade.

Uma das consequências da reforma trabalhista que reforça as práticas de exploração foi a falsa ideia de autonomia do trabalhador nas negociações, como se os descentes dos escravizados estivessem em igualdade de diálogos com os patrões na hora de exigir seus direitos. Na prática, houve um enfraquecimento das entidades de classe e aumento das vulnerabilidades dos trabalhadores e das dificuldades para acesso à justiça.

O debate atual sobre a redução da jornada de trabalho e a campanha pelo fim da jornada 6×1 (seis dias de trabalho e apenas um de descanso) escancararam a persistência do pensamento escravocrata de desprezo pelo trabalhador em detrimento à proteção do patrimônio construído à base da exploração.

Como escrevi aqui na coluna, resistir à redução da jornada de trabalho é apego a esse passado de escravidão ao qual diversos políticos, de diferentes formações partidárias, e suas fortunas estão intimamente vinculados.

Mais de um século após o fim do regime de escravidão, além de eliminar o racismo legitimado por esse sistema produtivo, é preciso romper com os ciclos de dominação e exploração que se retroalimentam nas relações entre os poderes políticos e econômicos, que definem as escolhas nos processos eleitorais, nas criações e alterações de leis, nas prioridades das políticas e investimentos públicos e que tanto compromete a democracia.

+ sobre o tema

A saída contra a extrema direita é negra

A campanha fria e sonolenta de Joe Biden fez...

Discussão no trânsito acaba em prisão de mulher por racismo

  Uma discussão por causa de uma vaga de estacionamento...

Star Wars – E o boneco do Finn que ninguém compra?

Chegou o novo Star Wars e, junto com ele,...

para lembrar

Casal indenizará mulher em Santa Catarina por injúria racista

O casal Alex Sandro e Meri Cristina Afonso terão...

Com quase 20 anos, política de cotas revela resultados positivos na UnB

Com quase 20 anos, política de cotas revela resultados...

Afinal, o que aprendemos com o BBB20?

O Big Brother Brasil, em uma edição chamada por...

O espaço do negro no centro paulistano, por Vera Lucia Dias

UM ROTEIRO PELA CIDADE DE SÃO PAULO – O...
spot_imgspot_img

Construção de um país mais justo exige reforma tributária progressiva

Tem sido crescente a minha preocupação com a concentração de riqueza e o combate às desigualdades no Brasil. Já me posicionei publicamente a favor da taxação progressiva dos chamados...

Juiz condena alunas do Vera Cruz por racismo contra filha de Samara Felippo

A Justiça de São Paulo decidiu, em primeira instância, pela condenação de duas alunas por ofensas racistas contra a filha da atriz Samara Felippo. O...

Shopping Higienópolis registrou ao menos 5 casos de racismo em 7 anos

O shopping denunciado por uma família após uma abordagem racista contra adolescentes já registrou ao menos outros quatro casos semelhantes nos últimos sete anos. O...
-+=