Quem tem medo de ser negro?

No Brasil, a maior parte da população parda não se reconhece como negra. Não precisa ser especialista em relações raciais para entender quem esse afastamento beneficia.

Às vésperas do último dia 20 de novembro, quando se comemora a Consciência Negra no Brasil, o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre racismo e percepção racial da população brasileira. Muitos dados chamaram a atenção, como a manutenção da equação irresolúvel na qual a maior parte da população reconhece o racismo no país, ainda que um número muito pequeno se reconheça racista.

A pesquisa também demonstrou que a maioria dos brasileiros e brasileiras acredita que o racismo tenha aumentado nos últimos anos, ainda que a percepção do que é racismo continue focada nas ações individuais de sujeitos específicos, e não numa dimensão estrutural que englobe as ações e o funcionamento de empresas, instituições e do próprio governo.

No entanto, um dado chamou a atenção da opinião pública: a maior parte da população parda não se reconhece como negra. É importante dizer que, segundo o Censo de 2022, 45,3% da população brasileira se autodeclara parda. Estamos falando de um pouco mais de 92 milhões de pessoas, que atualmente, e pela primeira vez, compõem o maior grupo racial do Brasil.

O fato de a maior parte desses 92 milhões não se reconhecerem como negros merece atenção, cuidado e, sobretudo, estudo. No entanto, num mundo em que as informações devem correr de forma rápida, na lógica da “lacração” que impede o bom debate, estamos observando um encaminhamento que é, no mínimo, complicado.

Uma história mentirosa da mestiçagem

O avanço do debate racial dos últimos 20 anos, fomentado pela implementação de políticas de ação afirmativa e pela somatória histórica de ações dos movimentos negros, também foi fortemente impactado pelas construções de sentidos identitários, muitos deles pautados pela dinâmica narcisista das redes sociais. Não por acaso, nesses últimos anos, um número significativo de pardos passou a reivindicar um lugar social e racial específico, chegando a se desvencilhar da categoria negro.

Em parte, essa construção identitária por meio desse afastamento da categoria negro reforça a urgência de uma revisitação de peso na história e nas dinâmicas sociais da mestiçagem brasileira. 

No Brasil, foi construída uma história mentirosa da mestiçagem, que ignorou as múltiplas formas de violência que originaram a miscigenação do país. E mais: o mestiço foi utilizado como uma ferramenta que comprovaria a ausência de racismo no Brasil: como afirmar que um país evidentemente miscigenado seria racista?

Pois bem, a mestiçagem foi instrumentalizada para fazer valer o mito da democracia racial. Sendo assim, repito: é mais que urgente entender o que foi e o que é a mestiçagem no Brasil. Uma urgência que deve ser abraçada pelos movimentos sociais, pelos diferentes órgãos e instituições de ensino e pesquisa e pelo próprio Estado brasileiro, caso haja uma intenção real de compreensão das complexas relações raciais que compõem o país.

Ser negro é uma posição política

Essa urgência, no entanto, deve caminhar de mãos dadas com estudo aprofundado e crítico. E tão importante quanto: essa urgência precisa levar em consideração o que já foi dito tantas vezes e por tantas pessoas (negras em sua maioria): o racismo é um sistema de poder, no qual os privilégios estão designados às pessoas brancas (querendo elas ou não).

Essa dimensão é fundamental para entender uma das mais importantes e eficazes estratégias de luta antirracista do movimento negro brasileiro, que desde cedo me foi ensinada pelo meu pai: ser negro é uma posição política e não apenas uma pertença racial. Uma posição que pode ser adotada por pardos e pretos brasileiros.

Tomar o o negro como posição/categoria política não significa deixar de lado a multiplicidade de pertenças raciais que compõem essa mesma categoria. Significa entender que dentro da lógica do racismo, as experiências da população parda (em toda a sua diversidade), estão mais próximas das experiências dos pretos. Não se trata de recusar a ascendência branca e/ou indígena que pode estar presente nos muitos pardos e pardas do Brasil. Mas entender que, em última instância, essa ascendência não torna essa população parda imune às violências do racismo.

Em vez de palavras de ordem, lacrações infantilizadas e argumentos simplistas que se baseiam quase que exclusivamente em experiências pessoais (desconsiderando a perspectiva histórica e sociológica), podemos e devemos entender mais e melhor quem são os/as pardos/as do Brasil. E seria de uma ingenuidade inexplicável que essa compreensão se fizesse à custa da construção histórica dos movimentos negros brasileiros.

Não há razões para que os/as pardos/as tenham medo de ser negros.

E não precisa ser especialista em relações raciais para entender quem esse medo/afastamento beneficia.

Faz muito tempo que dividir é uma das formas mais eficazes de dominar.

Estejamos atentos.


Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

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