Arrogância, Desigualdade e Excesso

Expande-se, num mundo em crise, a ideia destrutiva de que poder e riqueza não têm limites; de que o outro pode ser convertido em objeto de prazer perverso. Há antídotos: a democracia e a compaixão

Por Eugène Enriquez | Tradução: Yolanda Vilela, do Outras Palavras

O sexto texto da série Ensaios sobre a Arrogância é de autoria de Eugène Enriquez, professor emérito de sociologia da Universidade Paris-Diderot. O texto parte da teoria da democracia para pensar o surgimento do campo da psicologia social como uma tentativa de resposta à arrogância. A crescente e atual expansão da arrogância interpela o ideal de igualdade da democracia. Se considerarmos que a democracia é por definição o regime no qual as diferenças convivem, que ela historicamente superou a hierarquia baseada no sangue, haveria lugar para a expressão da arrogância na democracia? “Exercício arbitrário de um poder sobre outrem”, visando a “despossuí-lo parcial ou completamente de sua característica de homem livre”, a expressão da arrogância tem por fonte principal uma assimetria baseada na associação entre a riqueza e o poder. Enriquez destaca ainda a atualidade de Sade (1740-1814)*, pois o homem, esse ser do excesso, que deseja a riqueza desmedida ou a paradoxal propriedade ilimitada, se encaixa no modelo de desejo onipotente e de volúpia contínua da “libertinagem”, que transforma os outros em simples instrumento para gozar um prazer perverso. (Myriam Bahia Lopes)

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A Arrogância nos grupos

Parece-me importante precisar, antes de qualquer desenvolvimento, o sentido do termo arrogância. Este não deve ser confundido com palavras como orgulho, desdém, desprezo, sentimento de superioridade etc. Por uma razão essencial: é o único que qualifica a ascendência sobre o outro, o rapto de sua individualidade. Arrogância signifca exercer arbitrariamente um poder sobre outrem, despossui-lo parcial ou completamente de sua característica de homem livre.

Esse termo, que parecia reservado às sociedades altamente hierarquizadas, retorna atualmente de forma importante em nossas sociedades democráticas e nos interroga sobre o seu futuro.

A arrogância ligada às sociedades altamente hierarquizadas

O fato de nessas sociedades os homens poderem dar provas de arrogância em relação a outros parece ser algo natural. O estatuto que lhes confere o nascimento, a riqueza, o mérito reconhecido e o favor dos mais poderosos permite que eles tratem os outros com condescendência (desprezando-os e humilhando-os muitas vezes), pois estão seguros de suas posições, o que lhes dá precedência sobre os outros.

Nesse tipo de sociedade, as práticas mais violentas (que chegam à tortura e ao crime), evocadas nas obras de Sade (1740-1814), são comuns. As pessoas “importantes” podem, com efeito, se deixar levar impunemente por uma libertinagem que não tem nada de leve, visto que elas não estão no mesmo patamar que o mais comum dos mortais.

Encontraremos igualmente essa segurança tranquila nas sociedades em que as mulheres não têm direito algum, ou poucos direitos, nas quais elas correm o risco de serem violentadas ou em que temem ser mortas. Naturalmente, a arrogância que contém em seu cerne a possibilidade assassina não cede sempre a esse excesso. Nas comunidades camponesas, tão louvadas (frequentemente sem razão) por Tönnies (1855- 1936), existe uma hierarquia estrita das funções e, acima de todos, estão o senhor, o fidalgo provinciano e o padre, aos quais todos devem deferência, e eles fazem sentir a sua superioridade em todas as circunstâncias.

A arrogância vai se exprimir particularmente nas relações “face a face” ou nos pequenos grupos, onde é mais fácil manter tal postura, do que nas relações à distância. Nesses últimos anos, temos sido particularmente afetados pelo desdém, pela vontade de humilhação, mas é possível, longe das observações mordazes, manter um certo limite de “estima de si”. A distância tem um caráter protetor.

A arrogância, postura normalmente proscrita nas sociedades democráticas

Como a democracia é formalmente o reino da liberdade de cada um, ela não pode, em hipótese alguma (ao menos teoricamente), produzir arrogância, visto que ninguém pode abandonar a “propriedade de si” (R. Castels e Cl. Haroche).

Além do mais, cada pessoa que esteja vivendo “uma igualdade de condições” é igual a outra, ou seja, um semelhante, e não um superior ou um inferior. Sobre isso Tocqueville (1805-1859) escreveu:

[…] os gênios mais profundos e vastos de Roma e da Grécia nunca conseguiram chegar a essa ideia tão geral e ao mesmo tempo tão simples que é a similitude dos homens. Nos povos aristocráticos, cada casta tem suas opiniões, seus sentimentos, seus direitos, seus costumes, sua existência à parte… os semelhantes são vistos somente nos membros de cada casta… quando, ao contrário, as classes são mais ou menos iguais em um povo… cada um pode julgar, em um momento dado, as sensações de todos os outros; cada um dá uma olhada rápida sobre si mesmo; isso basta. Não há, portanto, miséria que não se conceba sem pena e cuja extensão não seja mostrada por um instinto secreto (TOCQUEVILLE, p. 171-174).

Assim, Tocqueville mostra que a compaixão se torna um elemento central das sociedades democráticas, pois ela está ligada à maneira segundo a qual cada um é afetado pelo que acontece com um outro pouco diferente de si mesmo.

Além disso, ele observou que os americanos não viviam somente como iguais, mas também como indivíduos que buscam a companhia de outrem, tanto nas relações bilaterais quanto nos grupos que eles forjavam em todas as circunstâncias, como se o fato de serem reconhecidos como “sujeitos” devesse levá-los, necessariamente, não a cultivar sua singularidade, mas, ao contrário, sua similitude, seu conformismo, criando comunidades onde cada um se sentisse confortável.

Como ele ressalta, a república não deve ter lutado, como na Europa, contra o princípio monárquico. O que explica a preeminência da sociedade civil sobre o Estado. Ora, para que haja sociedade civil é preciso que ela seja o produto “de crenças semelhantes e de ações comuns resultando da similitude dos sentimentos e da semelhança das opiniões”.

O contrário sobreveio na Europa. O que explica a tentativa revolucionária constante nos países europeus, que devem sempre se opor à tendência dos chefes a recriar Estados hierarquizados e promover arrogância, orgulho e humilhação. Certamente, o quadro desenhado por Tocqueville é um pouco idealizado. Contudo, em suas linhas gerais, ele continua sendo pertinente.

O que precede faz-nos compreender melhor as razões pelas quais a psicossociologia se desenvolveu inicialmente nos Estados Unidos.

 

 

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