As 5 mentiras sobre ser voluntário na África

“Você é um herói”, “não teria essa coragem” e “o mundo precisa de gente como você” são algumas das reações que geralmente as pessoas têm quando ficam sabendo que fui voluntário na África.

Por Gustavo Leutwiler Fernandez Do Conecte Blog

Por conta das referências acumuladas ao longo da vida a respeito daquele continente, imaginar cenas de crianças passando fome, pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, surto de Ebola, paisagens de tirar o fôlego e leões correndo na savana é inevitável.

Elas não estão erradas, pois tudo isso faz parte do dia-a-dia africano, mas estão limitadas pelo que a autora nigeriana Chimamanda Adichie chama de “única história”. Segundo a escritora, o problema de um estereótipo não é que ele é falso, mas que ele é incompleto. Depois de cruzar o Atlântico por três vezes para atuar em ONGs da África do Sul, Zimbábue, Etiópia e Ruanda, uma série de conceitos que eu tinha a respeito da África caíram por terra:

1. “É muita pobreza, né?”

É evidente que, durante os trabalhos, deparei-me com muitas situações tristes, lamentáveis e revoltantes. Não questiono os índices econômicos e sociais que colocam vários países africanos nas últimas posições em pesquisas de desenvolvimento humano e condições de vida. A questão é que, assim como acontece no Brasil, o problema é menos a pobreza do que a má distribuição da riqueza – problema cuja grande parcela da responsabilidade recai sob o período colonial. Fiquei surpreso com a infraestrutura e o desenvolvimento de Cape Town, com o altíssimo custo de vida do Zimbábue, com a fartura de alimento e a riqueza gastronômica da Etiópia e com a limpeza urbana impecável de Ruanda.

2. “Que lição de vida!”

Ser voluntário na África tem sido a experiência mais enriquecedora da minha vida. Quando alguém me diz, no entanto, que minhas viagens devem ser “uma grande lição de vida”, normalmente o que está subentendido é: “os aprendizados compensam o fato de que você abriu mão de passar as férias na Europa ou nos EUA, com todo o luxo e diversão, pra passar perrengue na África”. Não! Tornar-me um ser humano melhor ou ter a satisfação de fazer o bem não são objetivos, mas efeitos colaterais; ir como voluntário para a África tem como principal motivação aquilo que deve nortear toda viagem de férias: muita, mas muita diversão, mesmo!

3. “Cuidado com o Ebola!”

Em novembro de 2014, embarquei para o Zimbábue em minha segunda viagem à África. Na época, a epidemia de Ebola havia atingido o ápice. Naturalmente, família e amigos ficaram desesperados, perguntavam se eu estaria seguro, se não corria o risco de contrair o vírus e se eu não estava com medo. O que não era natural era a reação deles quando eu explicava que São Paulo estava mais próximo da zona do Ebola do que Victoria Falls, no Zimbábue: tomando como referência Freetown, capital de Serra Leoa, um dos países atingidos, a capital paulista estava a aproximadamente 5.100 km da região, contra 5.200 km do meu destino na África. Da mesma forma, quando estive em Ruanda, em fevereiro de 2016, fiz questão de mandar fotos dos jornais que falavam do Zika vírus e do risco de se viajar para o Brasil, para mostrar que, enquanto as pessoas daqui se preocupavam com minha segurança, os africanos me questionavam se era seguro vir para cá.

4. “Você é um herói”

O voluntariado não vai salvar o planeta – às vezes ele até cria novas dificuldades. Para resolver os problemas do mundo, precisamos de empreendedorismo, produção e consumo mais conscientes e uma mudança de valores individuais e coletivos. Ser voluntário na África é apenas uma forma mais sustentável de turismo e uma maneira de se aproximar da comunidade local, conhecendo-a de forma mais real, honesta, verdadeira, causando menos impacto negativo e, às vezes, construindo algo de bom. Quem pensa em ir à África para consertar o mundo deve começar primeiro analisando suas próprias atitudes e fazendo o seu melhor dentro de sua família, seu trabalho e seu círculo de amigos.

5. “A África precisa de nós”

Todas as ONGs nas quais atuei eram sérias e comprometidas com a comunidade local. Ainda assim, já parou para pensar que todas aquelas pessoas que atuam nas organizações perderiam seus empregos caso os problemas que elas combatem (pobreza, fome, destruição do meio ambiente, preservação de animais) fossem resolvidos? Não, a África não precisa de voluntários, ONGs, doações e ajuda dos países ricos – aliás, foram estes que criaram os problemas mais graves que eles enfrentam hoje, por meio da colonização, exploração e interferência política. O melhor que podemos fazer pela África é não atrapalhar nem estragar mais do que já estragamos, porque a África não precisa de nós – é o mundo que precisa da África!

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