As ideias fora do lugar

“Si hay gobierno, soy contra!”: eis aí uma máxima tão repetida quanto cretina. Na democracia, ser contra todo governo, sempre, não é uma postura crítica, mas infantil. É não perceber que num sistema representativo cabe a nós não só eleger o governo como influenciá-lo, seja criticando-o ou mesmo o aplaudindo. A frase, contudo, tem seu charme. Empresta a qualquer resmungo de oposição o silvo de um morteiro republicano, na Guerra Civil Espanhola. O cara pode ser um empresário corrupto que sonega milhões em impostos, mas basta dizer “Si hay gobierno, soy contra!” e fica se achando uma espécie de Hemingway redivivo, recostado numa colina de la Mancha, lutando contra o fascismo estatal.

por Antonio Prata no O Tempo

Uma das consequências da chegada da esquerda ao poder (ou, pelo menos, da chegada de um partido com um discurso de esquerda), em 2003, foi dar à direita este selinho hype, de “Soy contra!”. De uma hora pra outra, o sujeito podia se referir ao Lula como “Aquele retirante analfabeto!” e não estava sendo demofóbico, estava fazendo uma crítica ao poder. Dizia: “O melhor movimento feminino é o movimento dos quadris” e não estava sendo machista, mas lutando contra as feministas governistas que queriam castrar os machos livres da pátria. Piadas racistas e homofóbicas deixaram de ser vistas como reforços aos estereótipos de que o negro é inferior e de que o gay é errado ou doente, para se tornarem armas da livre expressão contra a “ditadura do politicamente correto”.

Leia também:Ampliando a Agenda: Por Helio Santos

Aguentar a velha hidrofobia reacionária andando por aí de sapatênis e pomada no cabelo, se achando moderninha, seria um preço aceitável a se pagar, caso o PT tivesse instituído a pauta pela qual foi eleito. Hoje, então, negros e brancos teriam as mesmas chances no mercado de trabalho, estudando em nossas boas escolas públicas. Gays andariam de mãos dadas, à noite, sem correrem o risco de serem espancados. Mulheres poderiam recorrer a um aborto, caso todas as providências oferecidas pela excelente frente de planejamento familiar em nossa invejável rede pública de saúde houvessem falhado. O quatrocentão ressentido repetiria à toda hora que “Esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!”, mas deixaríamos quieto, afinal, ele haveria perdido seu camarote no topo da pirâmide social, num país que deixara de ser um dos mais desiguais do mundo.

O problema é que, com o PT no poder, tais melhoras não vieram. Embora a concentração de renda tenha diminuído um pouco, os 5% mais ricos detém mais de 40% da renda total do país. Nas faculdades, apenas 11% dos alunos são negros. Gays tomam lampadadas na orelha, na Paulista. A polícia mata em média cinco pessoas por dia. As mulheres ganham cerca de 30% menos do que os homens e mais de 50 mil delas são estupradas, todo ano.

Assim, chegamos a este cenário desolador: no poder, uma esquerda esquizofrênica, incapaz de mexer em nossas feridas seculares, liberando, na oposição, as vozes mais raivosas, preconceituosas e reativas às mudanças que essa esquerda sequer promove.

Se fosse um ato de repúdio à desigualdade e à injustiça que se perpetuam, eu iria pra rua, hoje, acusar o governo. Mas pra andar atrás de um trio elétrico que estampa a imagem de uma mão sem o mindinho, ao lado de famílias que fazem “selfies” com a Tropa de Choque, licença: “Soy contra”.

 

+ sobre o tema

Tribunais são enviesados contra mulheres e negros e não fazem justiça, diz advogada da OAB

Os Tribunais de Justiça são enviesados e, por isso,...

Em 2025 comemoraremos as mudanças que começam aqui e agora

Em 2025 comemoraremos a primeira década de significativa redução...

O silêncio da mídia diante da denúncia de golpe do fotógrafo brasileiro ganhador do Pulitzer

Dez dias atrás, o fotógrafo Mauricio Lima foi festejado pelos grandes meios...

para lembrar

Maria Rita Kehl: ‘Nada justifica um golpe

Segundo a psicanalista, a democracia é um valor inestimável,...

Para defender a democracia, Dilma encara seu segundo tribunal

Presidente afastada enfrenta nesta segunda-feira (29) o seu segundo...

‘Nossa única chance de sobreviver é preservar a democracia liberal’, diz filósofa húngara Ágnes Heller

Aos 89 anos, discípula do filósofo marxista György Lukács...

O avanço dos mandatos coletivos

A cidade com o maior Índice de Desenvolvimento Humano...

Não é mentira: nossa ditadura militar também foi racista

Em meio às comemorações da primeira e mais longeva Constituição brasileira, promulgada em 25 de março de 1824 – um documento que demonstra a pactuação...

Militares viram no movimento negro afronta à ideologia racial da ditadura

Documento confidencial, 20 de setembro de 1978. O assunto no cabeçalho: "Núcleo Negro Socialista - Atividades de Carlos Alberto de Medeiros." A tal organização,...

Um passado que permanece

Neste domingo (31) completam-se seis décadas do golpe de 1964. É dever daquelas e daqueles comprometidos com a verdade e a justiça repetir o "Nunca...
-+=