Até sempre, Iyá Beata

No adeus à ialorixá, o que era medo fez-se encantamento. Há beleza em deixar um legado de fé, respeito às tradições, afeto e firmeza

por Flávia Oliveira no Globo

Foto: Marta Azevedo

Lá em casa, a morte foi sempre cercada de mistério. E medo. Criança não entrava em cemitérios; assuntos fúnebres eram tratados aos cochichos pelos adultos. Nunca me esqueci da primeira vez em que estive num velório. Morrera o irmão de uma vizinha. Minha mãe, sem alternativa, levou-me à capela colada ao Cemitério de Irajá. Ela entrou e me deixou à porta. A pouca altura não me permitia ver o corpo, só o caixão. Havia flores. Achei bonita a urna de madeira escura e belíssima a coroa de flores, que parecia ter meu tamanho. Comentei. Fui repreendida: “São bonitos para os mortos, não para você. Nunca repita isso. Atrai”. As três frases de Dona Anna me assombraram. Passei semanas pensando na morte. Ela viria e me aprisionaria no caixão que ousara admirar. Cresci, assim, temente à morte e impedida de nela ver qualquer sinal de beleza. Até dez dias atrás, quando amanheci com a notícia da passagem de Mãe Beata de Iemanjá, uma das ialorixás mais importantes do Brasil.

Eu conheci Iyá em 2015 e, desde então, a visitava em casa e frequentava festas do Ilê Omiojuaro, terreiro que ela comandava havia 32 anos, em Nova Iguaçu. Passei com ela o último Dia das Mães. Voltaríamos a nos ver na Festa de Iemanjá da casa, em 24 de junho, quando eu levaria, finalmente, a foto da bigorna do meu avô Pitu Ferreiro, que encontrei na visita à Cachoeira (BA), cidade que legou Mãe Beata e Dona Anna ao mundo. Elas nasceram na mesma cidade com quatro anos de diferença; eram primas em segundo grau. Mas não se conheceram. Quatro anos depois da morte de minha mãe, fui posta do caminho de Iyá Beata. Descobrimos o parentesco num encontro casual, que ela resumiu numa frase: “A ancestralidade é uma coisa muito forte”.

Mãe Beata me fez sentir filha novamente. Devolveu a alegria ao meu Dia das Mães. Naquele domingo, combinamos de organizar, em agosto, um sarau com bazar para vender parte das roupas e acessórios que ela acumulara ao longo dos 86 anos de vida. Duas semanas depois, ela partiu e fez-me órfã de novo. E aos filhos biológicos Adailton, Aderbal, Doya e Ivete. E aos netos. E às dezenas de homens e mulheres que, pelo candomblé, tornaram-se filhos e filhas da mulher de baixa estatura e alma gigante do Recôncavo Baiano. E aos milhares de frequentadores de seu terreiro. E aos milhões de mulheres, negros, LGBTs, religiosos de candomblé e umbanda que Beata defendia como ativista incansável pelos direitos humanos.

O consolo inicial veio de Luiz Antonio Simas, o historiador que tanto conhece das religiões de matrizes africanas. Ele tocou meu coração tomado de medo e tristeza com o mito de Iku, o orixá que vem diariamente ao Ayê (terra) para escolher os homens e as mulheres que devem ser reconduzidos ao Orum (céu), para que o barro que os moldaram seja reconstituído e forme novos seres. “A morte, assim, reafirma o mistério maior: a possibilidade de outras e outras vidas”, ensinou o mestre.

A beleza me tomou na despedida. Era fim da tarde no Cemitério de Nova Iguaçu e orixás incorporados abriam o cortejo. Atrás deles, seguiam 300, talvez 400 pessoas, quase todas vestidas de branco. A sepultura era no topo de uma ladeira, de onde se erguia uma cruz. O mar de gente, em silêncio sentido ou entoando cantos em iorubá, ocupava em extensão e largura a via principal do cemitério. Foi a imagem mais linda que eu já vi num sepultamento. No alto, o branco da multidão espalhada fez contraste com o céu azul e rosa do fim da tarde de outono, obra de Iansã para Iyá Beata, com certeza.

Ali, o que era medo fez-se encantamento. Percebi como é bonito deixar a vida terrena com um legado de fé, respeito às tradições, afeto e firmeza. Mãe Beata era tudo isso. No domingo de nosso último encontro, ela avisou que, por iniciativa do deputado Marcelo Freixo (PSOL), receberia em 7 de junho a Medalha Tiradentes na Assembleia Legislativa do Rio. E me convocou. O mesmo mar de branco — agora ao som de atabaques, violões e violino — ocupou o plenário da Alerj em homenagem póstuma à Iyá. Havia no ar, como no 27 de maio, saudade, gratidão. E beleza.

Mãe Beata de Iemanjá gostou de ver. Esteve presente, porque gente como ela não desaparece, é eterna.

Até sempre, Iyá.

+ sobre o tema

O lutador cubano que fez história em Paris com quinto ouro olímpico consecutivo em modalidade

O cubano Mijaín López consolidou-se nesta terça-feira (8/8) como o atleta...

Horror e tortura: Como era a vida dos escravizados da Salton e da Aurora

Alojamento com câmeras para monitorar tudo. Em caso de...

Nenê joga bem, mas Nuggets perdem para Suns

  O pivô brasileiro Nenê teve bom desempenho, mas o...

para lembrar

Governo lança campanha para reduzir consumo de energia com Taís Araújo

Governo lança campanha com Taís Araújo para reduzir consumo...

Pearls negras: “somos preciosas, bonitas e guerreiras”

Pearls Negras, anotem esse nome. Do alto do Morro...

Conheça palavras africanas que formam nossa cultura

A língua é viva e se move entre cidades,...

Usher também quer falar de racismo em “Chains”, em um dos melhores clipes da sua carreira

Ainda que caminhemos a curtos passos, as discussões sobre...
spot_imgspot_img
-+=