Autoestima contra o racismo

A ideia de museu é bem-vinda, desde que contribua para que a evocação da escravidão seja, no futuro, apenas o pano de fundo para nossas importantes contribuições

Por Nei Lopes, do O Globo

Em nossa opinião, uma das melhores armas no combate ao racismo é possibilitar aos atingidos por ele a aquisição de uma autoestima positiva. Somente altivos e “resolvidos” é que povos historicamente vítimas desse tipo de ofensa tornaram-se aptos a desmoralizar as causas de seu infortúnio, evitando que elas permanecessem e se reproduzissem.

No caso brasileiro, descendentes de africanos continuam sendo as vítimas preferenciais. Para esse segmento — no qual nos incluímos —, o mito da “democracia racial” e a focalização de nossa história apenas na condição escrava de nossos ancestrais, reais ou supostos, têm nos impedido de perceber nossa relevância e, a partir dela, moldarmos nossa autoestima.

A escravidão de africanos no Brasil foi um fenômeno histórico importante, mas a ampliação do foco sobre seus efeitos, reservando o conhecimento de suas causas apenas aos especialistas, é uma postura de efeitos danosos. Assim, é preciso garantir a todos, sobretudo aos mais jovens, acesso a uma verdade histórica simples: a de que o continente africano também foi berço de civilizações invejadas, herdadas de tradições imemoriais; e que a escravatura lá introduzida para garantir mão de obra aos empreendimentos europeus no Novo Mundo deveu-se a fatores muito mais complexos do que alegadas fraqueza ou inferioridade inata dos vitimados.

Eis então que vislumbro na estante o livro “A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica”, de Emanuel Araújo, idealizador do Museu Afro-Brasil. E a obra me diz que o debate ora travado sobre a criação de um Museu da Escravidão, pela Secretaria municipal de Cultura do Rio de Janeiro, é extremamente saudável. Principalmente porque ganha corpo num momento ainda de fortes restrições, nas redes públicas de ensino, à adoção dos conteúdos determinados pela Lei nº 10.639, promulgada em 2003. Ela versa sobre História da África e dos africanos e sobre o papel do povo negro na formação da sociedade brasileira, dos pontos de vista político e socioeconômico.

Acreditamos, com os apoiadores dessa lei, que as afinidades entre o Brasil e a África vão muito além daquelas reducionistas “influências africanas” reproduzidas pelos antigos livros didáticos. Condições ecológicas, históricas, sociais e antropológicas semelhantes são fatores que aproximam estas duas grandes porções da superfície terrestre que, há milhões de anos, a Natureza separou. Também reconhecemos que o comércio humano foi que reaproximou essas porções apartadas; e que a colonização portuguesa foi que deu ao Brasil a unidade linguística que hoje apresenta e que o religa, ainda uma vez, a uma enorme comunidade de africanos.

A ideia de um museu é, então, bem-vinda. Desde que contribua para que a evocação da escravatura, do escravismo e da escravidão seja, no futuro, apenas o pano de fundo para nossas importantes contribuições, reconhecidas como fundamentais à Civilização Universal. E que nesse futuro não se precise mais escrever nada do que aqui tentamos expor.

Nei Lopes é compositor e escritor

 

+ sobre o tema

Afropunk Bahia terá Alcione e Djonga como atrações

A cantora Alcione e o rapper Djonga serão atrações no festival Afropunk...

Atriz Isabèl Zuaa busca papéis em que a mulher negra seja protagonista de suas próprias histórias

Nascida em Lisboa, Isabèl ganhou destaque no cinema nacional por Fabiana...

Morre Mary Wilson, cofundadora do The Supremes, aos 76 anos

Mary Wilson, aclamada cantora e co-fundadora da banda The...

para lembrar

Terreiros de umbanda e candomblé serão legalizados em mutirão

Há uma energia conectando os terreiros de umbanda e...

Ataque suicida deixa 8 mortos em igreja Católica no norte da Nigéria

Um suicida dirigiu um carro carregado com explosivos...

Língua Iorubá é oficialmente Patrimônio Imaterial do Estado do Rio de Janeiro.

No último dia 15/08 foi aprovada na Assembleia Legislativa...

Zuma sugere que ter cachorro é parte da cultura branca

O presidente sul-africano, Jacob Zuma, foi bastante criticado...
spot_imgspot_img
-+=