Babilônia e as mulheres que não queremos ver

Antes mesmo de estrear, ‘Babilônia’, a atual novela das nove da Rede Globo, causava polêmica nas ruas. Os comentários e ameaças de boicote surgiram nas redes sociais desde que foi anunciado que as atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg viveriam um casal de lésbicas na trama.

por  Jessica Romero no Blogueiras Feministas

Babilônia estreou dia 16 de março e mesmo tendo elenco, autor e horário de prestígio, não emplacou na audiência e vem sofrendo duras críticas. Desde então, a emissora tem traçado estratégias de comunicação e até mesmo mudado o rumo da história da novela para tentar agradar e entender seu público.

Escrevo esse texto para compartilhar minha visão de telespectadora curiosa que tenta entender os motivos pelos quais o público repudia tanto a novela. Por tudo que li, pelas cenas que vi e pela melhor pesquisa de recepção que se pode fazer, o boca a boca, acredito que Babilônia sofra rejeição principalmente por mostrar mulheres que não queremos ver.

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Estela (Nathália Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) se beijam em cena da novela ‘Babilônia’ (2015) da Rede Globo. Imagem: Gshow/Divulgação.

Teresa e Estela

Logo no primeiro capítulo vimos duas das atrizes mais respeitadas do país se beijando. Para além da lesbofobia e homofobia da maioria do público, a cena chocou não só por ser um beijo de personagens mulheres lésbicas, mas também pela discriminação etária a essas mulheres. As personagens lésbicas que antecederam Babilônia e que, apesar das críticas, tiveram aprovação do público, eram Clara e Marina, interpretadas pelas jovens, belas e carismáticas atrizes Giovana Antonelli e Tainá Muller na novela “Em Família”.

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Essas, mesmo correspondendo ao padrão de beleza feminina imposto a nós mulheres, se beijaram só lá no fim da história. E só beijaram porque teve casamento, vestido branco e troca de aliança tradicional. Isso enquanto os casais héteros protagonizavam cenas quentes de sexo desde o primeiro capítulo.

No caso de Babilônia, a audácia maior foi colocar duas atrizes idosas se beijando e mostrando que sim, lésbicas são mulheres como todas as outras, envelhecem e viram avós também. Lésbicas são mulheres que amam e demonstram afeto, assim como sua avó. Não existe prazo de validade para o amor ou desejo independente da orientação sexual da pessoa. Mas isso, mostrado na televisão, incomoda. A sexualidade da mulher incomoda. A sexualidade da mulher lésbica incomoda muita gente e mais ainda.

Basta inverter a cena para vermos que além da homofobia está o etarismo em relação às mulheres. Se a cena de carinho fosse entre um casal de vovozinha e vovozinho todos achariam “fofo”, ou até mesmo emocionante, um amor duradouro. O casal Teresa e Estela são as mulheres que o Brasil não quer ver, são invisibilisadas porque não servem nem para satisfazer o homens que fetichizam as relações entre mulheres. Elas estão ali para nos provar que lésbicas são gente para além de todos os estereótipos da mídia. Elas são invisibilizadas na rua mas, ao aparecerem na televisão chocam, porque nos lembram que … existem.

Regina

Apesar de um pouco ofuscada, Babilônia também tem sua mocinha. Ela é Regina, personagem vivida pela atriz Camila Pitanga. Regina é uma mulher negra, moradora do Morro da Babilônia no Rio de Janeiro. Foi enganada numa relação com um homem branco casado e engravidou. Ele omitiu a gravidez e se ausentou, mas ela escolheu ter a filha e criou a menina sozinha. Teve que adiar o sonho de cursar uma faculdade, mas trabalha duro e consegue viver com dignidade. É Independente financeira e emocionalmente. Também é a chefe de família dentro de sua casa. Regina é Maria, Cláudia, Fátima, Fernanda, Patrícia e tantas outras mulheres da vida real. A estatística que o comercial de margarina esconde.

As “mães solteiras” que matam não só um leão, mas uma selva inteira por dia, para assumirem responsabilidades duplas. Não é mais aquela mocinha submissa que sofre por amor chorando no quarto. É a mulher real que tem que engolir o choro para sofrer escondido só depois de trabalhar, pegar a condução para voltar pro morro, cuidar da casa, dos filhos e se sobrar tempo… de si. Além disso, Regina é uma mulher empoderada, não abaixa a cabeça para o racismo ou machismo, bem diferente das personagens negras que costumávamos ver retratadas na pele de empregadas humilhadas.

Regina é a mulher negra que tem consciência dos seus direitos e que surge para enfrentar o racismo e o machismo cotidianos que sofre.  Ela também é uma mulher que não queremos ver, pois representa o país machista, racista e silenciador de mulheres mães que ainda vivemos.

Paula

Paula é outra personagem que aborda a questão racial brasileira. Ela é interpretada por Sheron Menezes e toca ainda mais fundo na ferida do público. Ela é o contrário de toda representação costumeira estereotipada da mulher negra e da favela na ficção. Paula é advogada bem sucedida, não tem filhos e não corresponde ao estereótipo de mulher “barraqueira” ou até mesmo hiperssexualizada que as novelas costumam construir. Ela vem protagonizando cenas marcantes ao se firmar como profissional competente e mulher empoderada que sonha com um futuro diferente das outras mulheres de sua família.

Por agora ter condições financeiras, decide se mudar para um apartamento num bairro próximo ao morro em que vivia. Uma nova narrativa ao recusar a supervalorização do discurso de “respeito às origens”, que era usado em muitas novelas para representar uma favela feliz e sem problemas, mascarando a desigualdade social dos morros e periferias brasileiras. Ela é a mulher que não queremos ver porque é a negra bem sucedida, a cotista de sucesso e a nova estatística que surge lentamente, mas com muita força no país. De terninho, cabelo black power, fala sensata e inteligente, ela vem para desmistificar as poucas possibilidades que eram dadas as personagens negras nas novelas e também na vida: a empregada, a “sexualizada” ou a “mãe solteira” da favela. Paula é mais uma das mulheres que o Brasil não quer ver para não ter que assumir seu racismo e encarar suas mudanças.

Da esquerda para direita: Regina (Camila Pitanga), Paula (Sheron Menezzes) e Beatriz (Glória Pires) personagens da novela ‘Babilônia’ da Rede Globo. Imagens: Gshow/Divulgação.
Da esquerda para direita: Regina (Camila Pitanga), Paula (Sheron Menezzes) e Beatriz (Glória Pires) personagens da novela ‘Babilônia’ da Rede Globo. Imagens: Gshow/Divulgação.

Beatriz

E por último, temos a vilã Beatriz. De justa e bom exemplo não tem nada, mas não deixa de levantar polêmica por seus feitos. Interpretada pela atriz Glória Pires, Beatriz é uma mulher sem pudores desde o primeiro capítulo. É uma vilã que mata, rouba e comete vários tipos de crimes. Conduta nada exemplar. Mas sinto que o que incomoda o público não é apenas a vilã ser vilã, afinal, quantas já não tivemos em toda a história da telenovela brasileira?

O pecado de Beatriz é a falta de pudores também para o sexo. A personagem seduz o tempo todo e usa seu corpo como bem entende, às vezes por conveniência em seus planos, mas às vezes por puro prazer.

Nas redes sociais, comentam ser um absurdo a forma como a personagem vê e usa o sexo. Uma grande hipocrisia, afinal uma cena como a do vilão Marcos (Thiago Lacerda) na novela das sete, ‘Alto Astral’, não repercute tanto e nem é considerada absurda. Um homem agride uma mulher, uma criança e é racista com um menino, mas passa batido pelo público. Afinal, por pior que seja, qualquer comportamento desviante de homens ainda será menos desviante que um comportamento sexual sem pudores de uma mulher. Não queremos ver e nem falar sobre o prazer e a sexualidade das mulheres. Matar e roubar é natural da vilania, mas transar com vários… é absurdo! Beatriz também é uma mulher que não queremos ver.

Eu não sei como a novela vai caminhar daqui para frente, os boatos dizem que a Globo vai “suavizar” algumas cenas e ser menos explícita nas representações femininas, que para mim são o grande trunfo da trama também pela interpretação das atrizes. Mas, a lição que fica, pelo menos até aqui, é que se o público não quer mudar suas visões conservadoras e preconceituosas, a TV que mude sua forma de representar o público. A grande questão, porém, é que não existe mais “o público”.

O telespectador e os personagens estão mudando e mesmo que não queiram assistir na tela, terão que lidar na rua e até mesmo dentro de casa com as mudanças do mundo. Gays estão “saindo do armário”, eles existem. Lésbicas, também. Cotistas estão entrando na universidade, estão tendo os melhores desempenhos e vão sair de cabeça erguida diante do racismo. Uma cotista poderá ser sua advogada, professora ou médica de seu filho. Não vai adiantar desligar a TV ou simplesmente mudar de canal, as mulheres que não querem ver e os direitos que não querem partilhar já atravessaram o muro da ficção e lutam para serem enxergadas, mesmo que alguns não queiram.

Autora

Jéssica Romero é feminista e jornalista em construção. Escreve no blog: Desvio Livre.

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