Conheci Bárbara em Goiás, durante os dois lançamentos dos meus livros no Cerrado. Ela apresenta-se como “Barbara Bombom, porque bombom é tudo de bom!” Logo de cara ela chamou-me a atenção pela força das palavras, a trajetória de vida que chega junto com os longos cabelos azuis, o corpo alto retinto e muitas curvas, não passando despercebida. E foi durante as intervenções do público que ela revelou ser quilombola e empregada doméstica. A procurei nos contar como é circular nas casas de famílias com o corpo diferente do padrão da maioria das empregadas doméstica no Brasil. E ela aceitou.
Fabiane Albuquerque- Quem é Barbara Bombom?
Barbara Bombom é uma mulher trans negra, quilombola de trinta e dois anos, que mora sozinha. Hoje é empregada doméstica, faxineira e tem uma vida pública (foi candidata a vereadora de Goiânia pelo PSOL). É mulher do povo, que gosta da comunidade, de estar junto, fazer e existir em comunidade.
Fabiane Albuquerque- Você disse se sustenta como empregada doméstica, como chegou neste emprego? Em geral, as domésticas no Brasil são indicadas por outras mulheres. E no seu caso?
Vindo da prostituição, onde eu não queria mais existir neste local, porque é muito perigoso e, ao mesmo tempo, dava sentido à minha vida, porque ali eu existia, eu era alguém, era a Bárbara, bonita, linda… A prostituição teve o seu lado ruim e o lado bom. Quando saí dos programas eu precisava ter uma profissão e não tinha. Eu não estudei por causa das agressões, pelas dificuldades da vida. O que me sobrou foi a faxina, lavar banheiro. Foi muito difícil para as pessoas confiarem em mim, mulher trans. Uma amiga indicou-me para dar faxina numa casa e nunca mais parei. Trabalhei dez anos nesta casa, hoje a mulher vive na Inglaterra. Tem outra casa onde trabalho há 18 anos. Essas pessoas que me abriram as portas foram passando a palavra sobre o meu trabalho.
Fabiane Albuquerque- Como as famílias te recebem?
Eu não trabalhei em casas de famílias nucleares, com papai, mamãe e filhos. Todas são casas só com um rapaz ou uma moça. Tem uma patroa que gosta de falar que ela é tão diferente que tem até uma empregada travesti. Tem muito preconceito nas famílias. Tem muita coisa difícil, sofri muitas coisas, como, por exemplo, os patrões colocarem dinheiro a mais para ver se eu ia pegar. Já aconteceu de tudo nesta vida de empregada doméstica. Uma vez escutei de uma patroa, durante uma entrevista, que eu iria pegar o marido dela, só pelo fato de eu ser travesti. E, o que pega muito no meu caso são as roupas. As pessoas querem que eu vá vestida comportada. Eu digo: vou fazer faxina. E vou com os meus vestidinhos. Às vezes as pessoas até queriam o meu trabalho, mas não queriam me contratar por causa das roupas curtas, dos shorts. Ser mulher trans não é fácil. Mesmo assim, as patroas são de muitos anos. Eu tenho a mãe Dora, a mãe Célia, a Gabriela. As minhas clientes são de muitos anos. Eu sempre faço o meu trabalho e um pouco a mais. Por ser mulher trans nunca posso fazer somente o meu trabalho, preciso fazer mais para ficarem comigo. Se eu tinha uma faxina, eu lavava os panos de chão, os lençóis, as toalhas, para garantir voltar. Limpar o chão todas fazem, mas o que eu faço só eu mesma. Eu não sofri assedio porque era família com uma pessoa, ou uma mulher, ou um homem solteiro. Tinha casa que nem cheguei a conhecer a patroa, ela deixava a chave e depois fazia o pagamento pela conta.
Fabiane Albuquerque- As famílias não te aceitam por medo de você roubar o marido, mas na prostituição, os clientes não são casados?
Amiga, eu não consigo entender o tamanho deste preconceito. Os homens que nos procuram são 90 por cento casados. Tem um fetiche pelos nossos corpos. E isso eu não sei explicar. Eu tinha cliente que levava a esposa na igreja e depois ia ficar comigo. Que ia ao restaurante, deixava a esposa lá, para, em seguida, procurar uma travesti. E, no shopping, via homem de mãos dadas com a mulher e depois estava no banheiro dando em cima da gente.
Fabiane Albuquerque- Como é ir para o trabalho?
Ir para o trabalho é muito solitário. Eu sou a única no ônibus, única no prédio, única no elevador. Já me mandaram pegar o elevador de serviço para não entrar comigo. Eu respondi: “acabei de comprar um apartamento aqui.” Eu ia sozinha durante o dia, você não vê outros corpos trans no dia, somente na noite. As pessoas te veem todos os dias no ônibus e ainda assim é um impacto, tem cochichos, olhares… Elas acham que sou vulgar e vou dar em cima de todos os homens. Os homens não podem conversar comigo no ônibus, na rua… O fato de rolar esta desconfiança com mulher trans é porque somos vistas como coisa ruim, somente pelo viés da sexualidade, na rua, fazendo barraco. “Como assim uma travesti subindo no meu prédio para trabalhar?” As pessoas estranham quando eu subo o elevador, trans e preta. Subir nos prédios sempre foi horrível. Também sofri preconceito na rua, no trabalho de noite como prostituta. Eu sempre fui a única preta no meio das travestis brancas.
A única coisa que poderia te contar é que fui numa casa de família, que a mulher gostou de mim, mas eu chegava depois que o filho saia, o marido saia e eu ficava sozinha com ela. Na primeira faxina eu tirei a moto da garagem para limpar. O marido ficou puto, achando que eu ia estragar a moto caríssima. Ele não quis mais. Aí ela chorou dizendo que nunca mais iria achar uma pessoa como eu. Ela era deprimida, fumava escondido. No sábado eu levava para ela, escutava os seus problemas. O marido era a autoridade e ela confidenciava comigo.
Fabiane Albuquerque- E no quilombo, tem preconceito?
O Quilombo de onde eu venho é urbano e também sofri preconceito, senti o estranhamento no início, mas o fato de estar sempre junto em todas as construções coletivas, as coisas foram se ajeitando. A luta coletiva foi mais forte que o preconceito. Eu hoje sou a representante do quilombo.
Fabiane Albuquerque- Como você chegou na política partidária?
Eu sempre fui muito articulada, gostava de falar em público. As pessoas viam que eu tinha potência. Mas as pessoas usavam a minha imagem. Eu fiz um vídeo sobre Caixa d’água que viralizou e fui chamada a filiar-me ao partido. Aí apaixonei-me pela luta partidária, assim como a luta quilombola. Foi assim que cheguei na política, pela paixão de estar na luta, em combate. Na última feira que fui como candidata a vereadora, uma mulher ficou muito surpresa de ver uma mulher trans fazendo campanha, abraçada pelas pessoas. Ela falou: “Mas não é daquelas que pegam os nossos maridos, não, né? Que fazem programa, né?” Eu sou a primeira candidata negra trans da cidade de Goiânia, isso abre caminhos e quebra barreiras.
Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, autora dos livros Cartas a um homem negro que amei (Editora Malê) e Ensaio sobre a raiva (Editora Patuá).
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