Em “Uma História Feita por Mãos Negras” (ed.Zahar, organização Alex Ratts), Beatriz Nascimento partilha suas angústias como mulher negra, militante e ativista, numa sociedade onde o racismo, de teor colonial e escravista, continua sendo, mesmo após a abolição da escravatura, um dos principais fatores de opressão e exclusão social, na área educacional, no mundo do trabalho e na política.
Ao reler seu livro, que reúne ensaios e artigos defendidos em congressos e publicados apenas em jornais e revistas, minha mente remete ao assustador e brutal assassinato da autora no dia 28 de janeiro em 1995, aos 52 anos, na porta de um bar em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Beatriz Nascimento morreu por uma circunstância banal e covarde: quis ajudar a amiga Áurea Gurgel Silveira, que também era sua manicure, a se separar do namorado Antônio Jorge Amorim Viana, um homem branco e violento, conhecido pela alcunha de Danone, que já tinha cumprido pena de 11 anos por estupro, homicídio e porte de drogas.
No dia do crime, Beatriz e Antônio Jorge discutiram sobre a situação com Áurea, que rotineiramente aparecia com hematomas, sintomas psicológicos de violência doméstica e manifestava o desejo de largar o sujeito. Idealista, a historiadora resolveu compra briga da agredida. A discussão acalorada com o seu futuro assassino teve trocas de ofensas e xingamentos de fundo racial, por parte dele. Não satisfeito com o bate-boca, Antônio Jorge saiu e retornou de arma em punho e disparou cinco tiros à queima-roupa em Beatriz, sem chance de defesa, matando-a na hora.
A morte da historiadora e ativista, que cumpria as primeiras etapas do seu mestrado em Comunicação Social na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), sob orientação do professor Muniz Sodré, colega e colunista da Folha, repercutiu muito na imprensa, abalando o movimento negro do Rio de Janeiro e do país, que já tinha perdido a filósofa Lélia Gonzalez, infartada no ano anterior. O baque foi grande e o criminoso, afinal, preso dias depois.
Julgado e condenado a 17 anos pelo crime, Antônio Jorge tentou justificar sua brutalidade por estar bêbado e drogado, além de outras calúnias que quis imputar sobre a vítima. Mas não colou. O pior foi o depoimento da “amiga” Áurea Gurgel Silveira, que acabou também sendo indiciada. Ela recuou e contra-atacou Beatriz Nascimento em favor do namorado, sustentando a intromissão da historiadora no seu relacionamento e insinuando que Beatriz aliciava menores e gostava de participar de orgias. Mentiu diante do júri descaradamente.
Ligada por amizade a Beatriz Nascimento, comovida diante tudo o que aconteceu, a escritora Conceição Evaristo escreveu e dedicou para a ativista morta um dos seus mais belos poemas, intitulado “A Noite Não Adormece nos Olhos das Mulheres”, publicado nos Cadernos Negros, volume 19.
No poema, com sua escrita do cotidiano, potente “escrevivência”, a mineira retrata “a lua fêmea”, as “noites molhadas de lembranças” e as “vaginas abertas/ [que] retêm e expulsam vidas”, donde “Ainás, Nzingas, Ngambeles/ e outras meninas luas/ afastam delas e de nós/ os nossos cálices de lágrimas.”
Tom Farias – Jornalista e escritor, é autor de “Carolina, uma Biografia” e do romance “Toda Fúria”