Brasil, virá que eu vi

Essa gente pode ser corrupta, mas o presente está tão minado que será preciso repetir o óbvio: em democracia, toda a gente tem de poder ser investigada.

Por Alexandra Lucas Coelho Do Publico

1. Estou no meio da Europa com a cabeça no Brasil, é sexta-feira à noite aqui, grande parte dos meus amigos cariocas estarão na Praça XV, grande parte dos meus amigos paulistas estarão na Avenida, mas nenhum dos que saiu à rua é petralha do poder, tal como nenhum dos que ficou em casa é coxinha do golpe, ou um não-estou-nem-aí, ou isto-só-à-bomba. Todos em angústia, não querem uma guerra civil e querem mil coisas diferentes dentro da mesma: democracia. Nisso, acredito, estão com grande parte do Brasil, apesar dos sabotadores e dos candidatos a salvadores, com seu coro colonial: se um juiz vira rei, deixa de ser juiz, vai nu. Não acredito em Dom Sebastião, acredito no Brasil.

2. Então, no meio de toda a gritaria dos dois lados do Atlântico, a primeira coisa que leio ao abrir o computador é VAMOS DE MÃOS DADAS, a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade:

estou preso à vida e olho meus companheiros

estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças

entre eles, considero a enorme realidade

o presente é tão grande, não nos afastemos

não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas 

O poema não começa nem acaba aqui, mas as palavras para agora parecem-me estas, contrariando a gritaria, o maniqueísmo e aquela onda de triunfalismo classista, do género, eis o resultado de entregar o governo a essagente. O que tanto se aplica aos herdeiros do Brasil colonial como aos herdeiros do Portugal colonizador. Há um Portugal que ainda acha que o Brasil lhe deve a vida. É o mesmo Portugal que explorou açúcar, ouro, diamantes, café, índios, escravos, e por isso não morreu. Sempre que tropeço nesse Portugal amo mais o Brasil.

3. Essa gente pode ser corrupta, em vários casos comprovadamente foi, em todos deve ser investigada, sem excepção para presidentes, ex-presidentes, ministros. É o óbvio da democracia, mas o presente está tão minado que será preciso repetir o óbvio: em democracia, toda a gente tem de poder ser investigada. Isso inclui a Câmara de Deputados, começando por quem a ela ainda preside, o ultraconservador Eduardo Cunha, sobre quem pendem acusações de corrupção muito mais graves do que as suspeitas que existem sobre Lula. E implica que o judiciário não apareça como o justiceiro que vai derrubar o executivo, entregando escutas à imprensa num momento de emergência nacional, como quem lança petróleo no fogo.

4. Professor de filosofia na USP, Vladimir Safatle escreveu na sua mais recente crónica para a “Folha de S. Paulo”: “Não quero viver em um país que permite a um juiz se sentir autorizado a desrespeitar os direitos elementares de seus cidadãos por ter sido incitado por um circo midiático composto de revistas e jornais que apoiaram, até o fim, ditaduras, e por canais de televisão que pagaram salários fictícios para ex-amantes de presidentes da República a fim de protegê-los de escândalos. O Ministério Público ganhou independência em relação ao poder executivo e legislativo, mas parece que ganhou também uma dependência viciosa em relação aos humores peculiares e à moralidade seletiva de setores hegemônicos da imprensa. Passam-se os dias e fica cada dia mais claro que a comoção criada pela Lava Jato tem como alvo único o governo federal. Por isso, é muito provável que, derrubado o governo e posto Lula na cadeia, a Lava Jato sumirá paulatinamente do noticiário, a imprensa será só sorrisos para os dias vindouros, o dólar cairá, a bolsa subirá e voltarão ao comando os mesmos corruptos de sempre, já que eles foram poupados de maneira sistemática durante toda a fase quente da operação. O que poderia ter sido a exposição de como a democracia brasileira só funcionou até agora sob corrupção, precisando ser radicalmente mudada, terá sido apenas uma farsa grotesca.”

5. Cronistas como Safatle são a excepção num circo mediático distorcido por uma rede de interesses também eles herdeiros de um Brasil oligárquico e apoiante da ditadura. Entre os jornais-jornais e os telejornais, a distorsão é muitas vezes revoltante. Entretanto, os brasileiros ainda não superaram mecanismos opressivos de há 400 anos, e há pouco mais de 20 anos viviam em ditadura. A angústia de Março de 2016 tem a ver com o medo de que tudo isso volte em força, um novo golpe como em 1964, que faça retroceder os avanços para tantos milhões de pessoas. Nostálgicos da ditadura civil-militar estiveram nas ruas este mês, participando em manifestações pelo impeachment de Dilma que clamaram ser maiores do que as de 2013. De certa forma, na origem, a explosão eufórica de 2013 foi o contrário da angústia actual, mas de certa forma, no desfecho, prenunciou o que aí vinha: várias trincheiras.

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