Cais do Valongo é reconhecido como Patrimônio Mundial Cultural

O Cais do Valongo conquistou neste domingo o título de Patrimônio Mundial Cultural concedido pela Unesco. Descoberto em 2011, durante as obras de revitalização da Zona Portuária, o sítio arqueológico é considerado um dos mais importantes testemunhos da diáspora africana localizados fora da África. No passado, a região foi o principal porto de entrada de escravos nas Américas — aproximadamente dois milhões desembarcaram ali entre 1811 e 1843. E, agora, com o reconhecimento internacional, diz Kátia Bogéa, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o cais equipara-se a lugares como a cidade de Hiroshima, no Japão, e o Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia, classificados como locais de memória e sofrimento.

no Extra

— Com tantos problemas no Brasil, conseguir dar uma lição na intolerância é emocionante. Existem 11 lugares no mundo reconhecidos como sítios de memória afetiva. Estamos na mesma categoria de Hiroshima e Auschwitz. A importância disso, primeiro, é lembrar que tragédias da Humanidade, como o holocausto e a escravidão, não devem ser esquecidas. Além disso, cerca de 80% do Brasil é composto por pessoas negras e mestiças. Ter um sítio como esse traz reconhecimento e uma nova perspectiva para as lutas de igualdade social e racial — afirmou, ainda emocionada, a presidente do Iphan.

APOIO DE PAÍSES AFRICANOS

A decisão unânime de dar o título ao Valongo foi tomada ontem pelo Comitê do Patrimônio Mundial, formado por 21 nações, numa reunião em Cracóvia, na Polônia. É o segundo título da Unesco conquistado pela cidade: o primeiro foi chancelado em 2012, para a paisagem cultural urbana do Rio. No caso do Valongo, o sítio é composto por vestígios do calçamento de pedras, construído a partir de 1811, para o desembarque dos africanos escravizados trazidos para trabalhar no Brasil. Também há um porto de pedra construído para receber a princesa Tereza Cristina de Bourbon, mulher do Imperador Dom Pedro II, em 1843.

A área corresponde à da atual Praça do Comércio, entre a Avenida Barão de Tefé, a Rua Sacadura Cabral e a lateral do Hospital dos Servidores do Estado. Nas cercanias do porto, existiam ainda armazéns, onde os negros recém-chegados eram expostos para a venda; o Lazareto, local de tratamento dos doentes; e o Cemitério dos Pretos Novos, onde os que morriam logo na chegada eram enterrados.

— O Brasil foi o primeiro país a inscrever um sítio relacionado à escravidão. E esse foi o primeiro a ser reconhecido no mundo ligado à questão da diáspora africana, à escravidão. Todos os países africanos fizeram uma reunião para apoiar (a candidatura) — diz Kátia Bogéa.

Um dos desafios, agora, é a conservação do novo Patrimônio Mundial, uma missão prioritariamente do município do Rio. Com a aprovação da candidatura, no entanto, explica a presidente do Iphan, as três esferas de governo terão que elaborar políticas de preservação do espaço:

— Assumimos um compromisso de que nos responsabilizaremos pela proteção desse sítio. Daí a importância de construirmos o Museu do Valongo, que conte essa história — defende a presidente do Iphan.

Representante da prefeitura do Rio durante a reunião na Polônia, a secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, celebrou o reconhecimento pedindo uma “reflexão para o futuro”:

— Todos os brasileiros precisam entender o que significa o Valongo. É uma comemoração dolorosa, mas pode significar uma reflexão para o futuro. Espero que essa celebração sirva para nos unir, e não para dividir.

No Rio, o prefeito Marcelo Crivella também comemorou. “Essa titulação nos impulsiona a repensarmos as memórias dolorosas do passado e colabora para a denúncia permanente de um processo histórico de violação dos direitos humanos. O Rio, neste momento, reafirma o orgulho e as conquistas do povo negro do Brasil”, afirmou, em nota.

Apesar do reconhecimento internacional, poucos turistas se aventuraram na região ontem. O mineiro Paulo Lopes, de 33 anos, era um deles. E, enquanto admirava o sítio arqueológico, sugeriu a ocupação da área por grupos de cultura negra:

— Seria bom termos uma melhor orientação sobre a importância deste espaço. E que grupos ligados à cultura negra, como os de capoeira, usassem essa área em dias específicos, atraindo mais cariocas e turistas. As placas informativas não dizem muito. Encontramos vestígios, pedras. Faltam detalhes, informações.

Por ser um lugar pouco conhecido até dos cariocas, o presidente da Riotur, Marcelo Alves, planeja divulgar mais a região nos canais oficiais do órgão municipal.

“TRISTE PROTAGONISMO NA DIÁSPORA”

Antropólogo responsável pela coordenação da elaboração do dossiê apresentado para a obtenção do título, Milton Guran avalia que a decisão da Unesco foi um reconhecimento do “triste protagonismo brasileiro na diáspora africana”. Segundo ele, o país recebeu aproximadamente 40% de todos os africanos escravizados que chegaram vivos ao continente americano.

— A força de trabalho do braço negro foi fundamental para que esse país se viabilizasse. O estado brasileiro, ao apresentar a candidatura, assumiu a importância da matriz africana na identidade nacional e na construção deste país como nação. Agora, esperamos que a cidade e o Brasil estejam à altura do desafio que se apresenta. Está embutida na candidatura do Valongo a criação de um museu nacional para recontar essa história e produzir conhecimento que promova a inclusão social e elimine o preconceito — diz ele.

Em um comunicado enviado ao antropólogo logo após o reconhecimento, o chefe da Seção de História e Memória da Unesco, Ali Moussa Iye, afirmou que o Valongo remete à tragédia sobre a qual o Brasil se construiu. “Esse reconhecimento do Comitê do Patrimônio Mundial faz justiça aos milhões de africanos arrancados das suas terras para serem reduzidos à escravidão e obrigados a construir outro continente que não o seu. Ele inscreve na consciência da Humanidade um dos seus maiores sítios de memória. O Cais do Valongo representa, de fato, uma das matrizes do Brasil e remete à tragédia sobre a qual esse grande país se construiu. Esse reconhecimento sem dúvida vai contribuir para o diálogo e para reconstrução”, afirma o comunicado.

As escavações do Cais do Valongo, iniciadas em janeiro de 2011, encheram sete contêineres, com milhares de objetos, como dentes de porco, colares e rochas recolhidas no entorno. Entre as raridades, havia uma caixinha de joias, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa. Dentro dela, foram encontradas 1.700 miçangas com cerca de um milímetro de diâmetro. O material, quase 500 mil peças, permanece sob a guarda da prefeitura, num dos galpões da Gamboa, que deveria abrigar o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana.

“QUE SEJA UM SÍMBOLO NA LUTA CONTRA O RACISMO”

Além do reconhecimento de uma das maiores tragédias na história da humanidade, o título de Patrimônio Mundial é a chance para que o Cais do Valongo se torne um novo símbolo da luta contra o racismo no Brasil. A opinião é do professor da Uerj Nielson Bezerra. Pesquisador do tema, ele afirma que a escravidão foi responsável pela “desterritorialização de 12 milhões de pessoas” no mundo.

— As pessoas que desembarcaram ali, cerca de dois milhões, tinham sido condenadas à escravidão, eram vítimas do tráfico. Um tráfico que representou a desterritorialização de mais de 12 milhões de pessoas que saíram da África e foram para as Américas entre os séculos XV e XIX. Foi um marco na tragédia humana. Que esse reconhecimento sirva, sobretudo, para que isso não se repita e para que se torne um símbolo da luta contra o racismo — afirma o professor.

O pesquisador ressalta, no entanto, o contexto do reconhecimento internacional. Para ele, o Brasil “demorou muito tempo” para olhar para a sua história:

— É importante pensar o protagonismo africano no Rio de Janeiro e na sociedade brasileira. É a primeira vez que a cultura africana, de uma forma geral, ganha um destaque com tamanha desenvoltura na história do Brasil. Até mesmo o brasileiro que pense que não tem relação com a história da escravidão africana no país está inserido no impacto da diáspora africana.

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