Candendê: terras de cativeiro e de sonhos de liberdade

FONTEPor Roseli dos Santos, enviado ao Portal Geledés
Roseli dos Santos Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs e do Grupo de Pesquisa Emancipações e Pós-abolição em Minas Gerais.

Acompanhamos a luta de Quitéria na justiça, em 1837, para provar ser mulher livre do cativeiro e o que foi vivido na fazenda da Conquista, no atual distrito de Ponto Chique, Barbacena, Minas Gerais, antigo território do Candendê ou Sítio dos Crioulos. Trata-se de um enredo sobre disputa e repressão da liberdade. As lembranças mobilizadas hoje acerca da Conquista, como se costumou chamar a localidade, não escondem seu passado de submissão e resistência vivido por aqueles que ali residiram e trabalharam ainda no período escravista.

O processo aberto para Quitéria por seu curador – uma espécie de advogado – mostra uma suposta artimanha empreendida por senhores para manter injustamente pessoas na escravidão. Assim, na tentativa de ludibriar as ações de conquista da liberdade, Dona Joaquina Antônia de Carvalho registrou Quitéria como cativa e transferiu seu domínio ao genro, Manoel Rodrigues. Essas ciladas do destino, contudo, não foram suficientes para apagar da memória da suplicante seu estado de mulher livre e, como tal, ela solicitou a liberdade para si e para seus filhos que estavam em domínio dos acusados. 

No requerimento à Justiça, Quitéria, informada por expectativas de liberdade, contou sobre sua vida e as suas vivências. Disse ela ser parda e livre e, naquele contexto, viver injustamente na condição de escravizada, por conta das vontades de gente que acreditava que mulheres como ela deveriam ter suas vidas e a sua existência reduzidas à condição de escravidão, como era o caso de sua antiga proprietária Joaquina Antônia de Carvalho e o genro desta, Manoel Rodrigues. Ainda que filtrado e intermediado pela dura e seca narrativa jurídica, apresento à leitora e ao leitor um trecho do processo de Quitéria, pois se trata de um testemunho das lutas negras por liberdade empreendidas por muitos homens e mulheres que se recusaram a aceitar a escravidão – ou cativeiro, nas palavras de Quitéria – como única condição que deveria marcar as suas existências. 

Diz o documento que 

Quitéria, parda, que nascendo livre se acha no injusto cativeiro de Manoel Rodrigues, morador no lugar denominado de Conquista, deste distrito, porque receosa sua primeira e injusta detentora Dona Joaquina Antônia de Carvalho e sogra do mesmo Manoel Rodrigues, que a suplicante cedo ou tarde proclamasse sua liberdade e que em virtude de sua proclamação lhe fosse assim tirada, a passou manhosa e arteiramente para o suplicado, fosse para título de compra, fosse por doação. E como sempre e inestimável direito da liberdade tão favorecido pela humanidade das Leis tanto civis como criminais, nunca prescreve, que a suplicante trata de proclamar o dito seu direito contra o suplicado, intentando no juízo municipal da Vila de Barbacena, uma ação de Libelo Civil para ser reconhecida julgada livre e isenta de toda escravidão, com os filhos de pariu, cujos filhos se acham em poder do mesmo suplicado e a dita sua sogra, sendo menores de 12 anos e como a suplicante não pode ser admitida sem intentar primeiro, por meio da reconciliação.

É importante pensar nas agências utilizadas por Quitéria em seu processo. O curador, em sua defesa, sustentou a não prescrição do “inestimável direito da liberdade tão favorecido pelas Leis tanto civis como criminais”. Os seus argumentos, já utilizados por outros defensores de escravizados, fazia a interpretação do livro 4 º das Ordenações Filipinas, título 11, que postulava “que ninguém [fosse] constrangido a vender seu herdamento e coisas que tiver, contra sua vontade”. E, ao mesmo tempo, no parágrafo 4º defendia que “em favor da liberdade são muitas coisas outorgadas contra as regras gerais do direito”.

Relevo da cidade Barbacena/Ibertioga. No centro, vê-se o nome da fazenda da Conquista, território em que Quitéria, presa ilegalmente ao cativeiro, utilizou da força de trabalho para lutar por autonomia. Fonte: Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais – Fundo: Secretaria da Agricultura, folha n.º 3, 1895.

A batalha jurídica entre Quitéria, Joaquina e Manoel demonstra o quão enlaçadas as relações escravistas estavam na esfera pública, onde conflitos latentes, não resolvidos pelas negociações no âmbito privado, acabavam chegando aos tribunais. Nessa perspectiva, acreditamos que Quitéria e sua família esgotaram todas as suas apostas e tentativas de acordos com a Dona Joaquina, a qual usou de má fé para mantê-la no cativeiro. Dessa forma, Quitéria não viu outra alternativa a não ser recorrer à justiça pelo seu direito à liberdade. O curador e a suplicante ainda buscaram uma reconciliação com Manoel Rodrigues, que fez pouco caso da petição, não comparecendo na audiência. Atitude que muda somente quando se tem ciência da continuação do processo à sua revelia. Assim, ao apresentar-se ao juiz condutor do libelo, ou acusação, Manoel alega não pretender se conciliar com o curador José Pinto Souza pelos seguintes motivos:

por ser o requerimento fabuloso e porquanto a escrava é sua e nenhum título, razão ou documento tem para a liberdade, porquanto pois, a mesma mãe da escrava foi cativa e este procedimento é sugerido por um João Antônio que sem consentimento da escrava, maquina em juízo, e por isso, desde já protesta contra qualquer injusta violência com que se é ataque ao direito da propriedade.

Todo o dilema começa em fins do século XVIII, quando Antônio Pinto Nunes, feitor do capitão João de Moura, realizou “coito ilícito”, violência sexual contra a escrava de seu empregador, Anna, “parda”. Desse ato, deu-se o nascimento de Elena, que, mesmo reconhecida pelo pai, era posse do capitão por ser filha de uma mulher cativa. Com o falecimento de Moura, em data que não foi possível identificar, Nunes, a quem o capitão devia certa quantia por suas porções de feitor, solicitou que na partilha da herança lhe fosse dado em pagamento o valor de sua filha para libertá-la, “ficando desde então, Elena forra e isenta de toda escravidão”, nas palavras do curador.

Tempos depois, Antônio Pinto Nunes se interessou em se casar com Anna Carvalho Duarte, outra Anna, filha de Manoel de Carvalho Duarte. De acordo com o relato de Elena, essa futura esposa do pai tinha por ela certa ternura. O sonho do matrimônio, contudo, foi frustrado com a morte da pretendente, mas, ainda na ânsia pelo casamento perfeito, Nunes passou a cobiçar a que seria sua cunhada, Joaquina Antônia de Carvalho, e logo se casou com ela. A partir de então, tudo mudou no mundo mágico de Elena, como demonstra a observação do curador sobre os atos do feitor Nunes, transcrito a seguir:

Tendo o rato das rivalidades de seu gênio feroz e impetuoso, ocultou a liberdade da dita sua filha, chegando até por caixa e miserável condescendência que as filhas desta, e consequência seus netos, fossem batizados como cativos. Que sabendo desta trama, a mãe da mesma Elena e avó dos filhos desta, que então era forra, requereu ao governador e capitão geral da capitania para que fizesse restituir à mãe e aos filhos, a sua antiga liberdade e foi quando sendo aquele Nunes intimado da parte do ouvidor da Comarca para fazer a restituição.

O curador, na defesa de sua cliente, utilizou um artifício inteligente para prejudicar a imagem de Nunes perante o juiz. O advogado, pautado na mentalidade da época sobre a brutalidade da escravidão, compara o feitor com o rato das rivalidades, ou seja, aquele que, por interesses particulares, não se privava de fiscalizar, castigar e denunciar outros seres humanos, corroendo suas liberdades.

Não obstante, Elena não se deixou fraquejar frente à tarefa de defender a liberdade familiar. Forra, isto é, uma mulher que havia vivenciado a experiência da escravidão, mas conseguido acessar ou conquistar a liberdade, e em busca de melhores condições de vida, Elena marcou, como tantas outras mulheres forras e cativas, as ruas, os becos e as vielas das vilas e arraiais mineiros com sua presença ao exercer certas atividades econômicas. E foi dentro dessa dinâmica social, com fortes elos horizontais, que Elena levou até ao ouvidor sua queixa em relação às atitudes do próprio pai, mesmo ciente das diferenciações no trato destinadas a esses grupos sociais pelas esferas públicas do poder.

Nunes, então, se viu obrigado a apresentar seus netos frente ao ouvidor para estabelecer a restituição das suas liberdades. Mas, novamente, ele utilizou de desculpas para adiar tal ação, alegando moléstias que o proibiram de efetivar a solicitação. E não para por aí. Como diz Riobaldo em Grande Sertões: Veredas, “cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito”. Assim parece ter sido a relação amorosa entre Nunes e a esposa: tendo para com esta uma subserviência desmedida, ele apronta outra vez com seus descendentes. Vejamos mais uma de suas trapaças descrita no Libelo:

Que por virtude dessa promessa se propôs o Nunes restituir a liberdade de Elena e seus  filhos, sendo um destes a autora Quitéria parda e que nasceu depois da liberdade de sua mãe, mas ainda assim, suplantado o Nunes pelo temor e respeito de sua mulher, aquele não ousava opor-se em coisa alguma, em mais a respeito de Elena de quem era inimiga capital, recorreu a uma estratagema fabulosa arteiro e foi ele […] não querendo desgostar a mesma sua mulher, de quem era fervo e humilíssimo, fingiu que João Antônio de Araújo [esposa de Elena] lhe dava em troca de Elena, uma outra escrava, a fim de se casar com ela, como de fato casou, fazendo passar o crédito fantástico ao mesmo João Antônio da quantia de 80 mil réis para fim de autorizar. Mas este embuste foi de todos conhecidos para que a verdade é que nem houve tal troca da parte de João Antônio, nem era possível que uma escrava custasse a quantia de 80$000. A Elena saiu do poder de Nunes, para ser anteriormente livre e livres os filhos que pariu depois da liberdade.

Nesse caminhar em pedras, Elena teve sua liberdade restituída após o conhecimento de todos do “estratagema fabuloso” do pai para garantir-lhe a liberdade sem prejudicar a “relação de amor” com a esposa. Interessante pensar que Nunes buscou criar uma venda imaginária da filha ao futuro genro por um valor que, para a época, era inferior ao correspondente a uma escrava com as características de Elena, o que deixava perceptível a farsa. Elena conseguiu se ver liberta das agruras impostas por um passado de amores ilícitos, rivalidades e opressão, não ocorrendo o mesmo com sua filha Quitéria. Essa continuou mantida “em iníquo e injusto cativeiro, perpetuando-o, e o de sua casa toda livre, por assentos de batismos ab-reptícios e sub-reptícios”. Ou seja, Nunes e a esposa batizaram os filhos de Elena como cativos.

Todavia, mesmo em novas paragens, Quitéria não desistiu em denunciar o cativeiro ilegal. Não sabemos por quanto tempo ficou sob o jugo de Manoel Rodrigues. Contudo, ela viu nesses grotões das Gerais, a possibilidade de realizar atividades fora da fazenda da Conquista. Como informado pelo curador no libelo, Quitéria era obrigada a entregar diariamente jornais (quantias em dinheiro) no valor de duzentos e quarenta mil réis ($240) ao proprietário da fazenda. Essa foi uma atitude contestada pelo curador, pois, era impensável tal obrigatoriedade, já que a dita era livre e isenta da escravidão. De tal sorte, ele terminou o documento afirmando estar Quitéria e sua filha menor, de nome Maria, injustamente sob o domínio do réu.

A fazenda da Conquista reapareceu em meus próprios percursos no século XX, quando minha tia/avó Ana Cirilo passou a ser lembrada pelos memorialistas da família, não cultivando a terra, mas sempre descrita como uma cozinheira de “mão cheia”, que crescera na fazenda da Conquista. Ana Cirilo e a Quitéria não se conheceram. Contudo, em outros tempos e contextos, elas exerceram funções parecidas na mesma “casa-grande”. Ambas as mulheres negras, sendo a primeira, Ana, do pós-abolição e livre da escravidão, e a segunda, Quitéria, do período escravista e cativa ilegalmente, esbarraram-se em linhas temporais distantes na lida diária da casa “senhorial”.

Ana Cirilo fez parte de um mundo republicano, onde o trabalho doméstico era relegado às mulheres negras desde a infância como um sistema educacional. Pelas salas e cozinhas, as antigas relações escravistas vivenciadas por Quitéria camuflavam-se em novas roupagens com as mesmas relações hierárquicas. Ana, mulher livre do século XX, esteve “presa” a uma sociedade de valores paternalistas e patriarcais que moldaram “laços” entre o empregador e a empregada com apelo afetivo e uma falsa ideia de pertencimento. Por trás da falácia “ela é como se fosse da família”, têm estado práticas de subordinação, dependência e submissão. Era um fazer parte sem pertencer!

Retratos dos irmãos Duarte – Ana Cirilo, única mulher entre os irmãos Agenor, Sebastião e ao lado de Ana, José Quintino. Barbacena, 19 de maio de 1975. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os anos passaram para Ana Cirilo. Atarefada, não teve tempo de estudar e formar a própria família. Ela criaria os filhos dos outros. Já em idade madura, os tempos na Conquista foram deixados de lado para que se iniciassem novos caminhos. Ela rompeu com a rotina de cozinheira e serviçal para dedicar-se à criação dos sobrinhos. Nos anos de 1980, Ana Cirilo mudou seu destino do pequeno distrito de Barbacena, para a cidade de Juiz de Fora. Focada no apoio do grupo familiar, com voz altiva e forte, tornara-se referência do grupo. As suas histórias e memórias desvaneceram-se com o fechar dos olhos, numa manhã fria juiz-forana, aos 92 anos de idade.

Ana Cirilo e Quitéria não estão mencionadas em livros didáticos, mas são personagens reais, com dilemas e lutas, sonhos e conquistas, atravessados pelo tempo num mesmo espaço territorial. Foram mulheres que enfrentaram o tema da liberdade à sua maneira, em pequenos atos e falas, e, apesar de presas ao sistema estrutural, que não as respeitavam como pessoas, mas sim a previam como braço de trabalho, elas encontraram, na família, o aporte para continuar a sonhar com a tal liberdade.

Assista ao vídeo da historiadora Roseli dos Santos no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos. (EM13CHS601) Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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