Carta à Carolina Maria de Jesus

FONTEPor Sara Maria Silva de Oliveira, enviado para o Portal Geledés
Colagem by Domitila de Paulo

No ano de 2020 a obra “Quarto de Despejo“, da intelectual e escritora negra Carolina Maria de Jesus completa 60 anos, o livro auto biográfico é um chamado ancestral que ecoa a partir de uma voz feminina e negra que têm muito a dizer sobre o nosso presente. Parar e se permitir ouvir essa voz nos possibilita entender que o nosso mundo não seria tão catastrófico se abraçássemos a concepção de mundo dessas mulheres, que há muito tempo têm criado epistemologias, ciências e suas filosofias na tentativa de reconfigurar o nosso presente para estabelecer um afro-futuro. “Uma revolução chamada Carolina” é o tema da FLUP (Festa Literária das Periferias) desse ano, e eu junto a outras “Carolinas” fui selecionada pelo propósito de construir esse amanhã, e é com muita coragem e bravura que compartilho esse amanhã com vocês:

Carta a Carolina Maria de Jesus

Há muito tempo venho afirmando o compromisso íntimo e ancestral de encontrar você em mim, desde nossos traços, tons e performances do não-medo que costuram nossas trajetórias, as mais amargas e doloridas narrativas que tecem nossos caminhos. Desde cedo, quando levanto, quando cada parte do meu corpo se movimenta, quando a natureza permite que eu respire é uma maneira de perceber que não só sobrevivi, mas que estou viva, e você vive em mim, e vive em um mesmo tempo-espaço que outras milhões de negras-meninas que permaneceram em um mundo que esperava justamente o contrário. Somos e existimos como água, nossas energias líquidas transitam em cada corpo negro que habita o não-silêncio. Graças a Oxum, nosso tempo não é linear nem ocidental, ele é cíclico, por isso volto a reafirmar que negras-mulheres ultrapassam as experiências de morte e renascem umas nas outras, nenhum corpo negro feminino morre de verdade, e é por isso que acredito que você vive em mim, quando as mãos pretas de minha mãe costuram memórias afetivas de suas avós, quando minhas tias modelam narrativas com os dedos ao trançar meus cabelos, ou quando “O quarto de despejo” me envolve assim como nossas mães pretas envolvem suas negras-meninas em seus tecidos de proteção. E antes que esta carta atravesse seu destino, Carolina, é possível que você própria já tenha lido, porque a Carolina que existe em mim me ajudou a gestá-la no ventre da minha própria ancestralidade.


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