Carta aos espanhóis: e se nos unirmos para erradicar o racismo?

FONTEPor Jamil Chade, do UOL
Vinicius Júnio (Foto: Oscar del Pozzo/AFP)

Queridos amigos espanhóis,

Picasso, Gaudí, Montserrat Caballé, Cervantes, Concha Buika, Rafa Nadal, Antonio Machado, Paco de Lucia, Ferran Adriá ou Maruja Mallo desfilam como marcos da nossa civilização e traçam os contornos na humanidade. Todos, em algum momento de nossas vidas, tivemos a Espanha em nossas consciências coletivas.

Sua cultura, sua genialidade, sua culinária, sua percepção do sentido da vida nos encantam. Vocês são referências artísticas, intelectuais e científicas para milhões de pessoas pelo mundo. Não há uma invasão de turistas ao país de vocês por acaso.

Mas precisamos conversar.

Vocês e nós sabemos que o que ocorreu em Valência não se trata de um ato isolado. Nem na Espanha e nem no Brasil. Por isso, escrevo essa carta para propor algo mais ousado que apenas a troca de acusações: e se reinventássemos o futuro? E se nos uníssemos contra essa realidade?

Recuso-me a cometer a injustiça de generalizar o caráter de uma sociedade. Mas a prova de que vocês não são racistas não está em cada um se distanciar de uma ofensa racista. Isso não basta.

Racistas precisam ser punidos de forma exemplar, e os omissos precisam se posicionar. Leis precisam existir e serem cumpridas, assim como precisa existir uma permanente vontade política e uma campanha de educação desde a primeira infância. Na Espanha e no Brasil.

Não basta não ser racista. Temos de agir, denunciar e reformular nossas estruturas mentais, econômicas e políticas.

Alguns de vocês talvez já saibam. Sou pai de dois españolitos. Orgulhosamente espanhóis, entre as diversas identidades que desenham as almas e referências dessas duas crianças.

Ao longo dos anos, isso talvez tenha me garantido um certo escudo. Mas, ainda assim, são frequentes os comentários que recebo sobre como nós, brasileiros, temos de “trabalhar mais e sambar menos”, e tantas outras variações da mesma “brincadeira”.

Por meus antepassados serem libaneses e por trazer essa marca no nome, no sobrenome, na sobrancelha e no nariz, já fui chamado mais de uma vez de “Moro” na Espanha. Por vezes, como uma ironia. Outras, como um alerta.

Ser mouro não é uma ofensa, ainda que a história nos conta como, em 1499, depois da rebelião de Albaicín, todos os mouros da Espanha foram batizados por decreto real e por força. Mas sabemos que esse termo é hoje usado de forma despectiva e carregada de uma profunda xenofobia.

Não há como comparar minha situação ao que vive Vinicius Jr e tantos outros afrobrasileiros, afrocolombianos e imigrantes de tantas partes do mundo sem a visibilidade do craque do Real Madrid. E o que dizer então das mulheres latinas.

Estou no grupo dos ultraprivilegiados. Eu sei disso. O que me preocupa, assim como no Brasil, é que não se trata apenas de frases soltas num jantar ou risadas num show de stand up.

Esses comentários e essa atitude num estádio que se transforma numa caixa de ressonância da sociedade são episódios do mesmo fenômeno.

Os atos criminosos de racismo contra Vinicius Jr. são sintomas de uma grave crise que nossas sociedades enfrentam hoje: a do movimento antidireitos. Por qual motivo esses grupos não sentem constrangimento em bradar seu ódio?

Estudos na Espanha —tanto do governo como de entidades da sociedade civil— apontam como o racismo, a discriminação e a xenofobia crescem no país.

Um dos levantamentos mais reveladores foi feito em 2020 pela entidade Provivienda. O estudo não é sobre denúncias na Justiça. Mas sobre o cotidiano de milhões de pessoas.

O que fizeram os autores do levantamento?

Pegaram o telefone e ligaram 1,8 mil vezes para agências imobiliárias ao ver o anúncio do aluguel de um apartamento nas grandes cidades espanholas.

Uma ligação era feita por um espanhol. A outra, por um imigrante com sotaque.

Ligavam e perguntaram sobre o mesmo anúncio relativo ao aluguel de um apartamento.

O resultado: diferentes exigências, tratamento e disponibilidade do apartamento em questão, dependendo do sotaque que se escutava.

Entre os estrangeiros, muitos eram informados que aquele apartamento já estava alugado. Minutos antes, estavam disponíveis quando a ligação era de um espanhol.

O estudo não parou por aí. Um segundo teste foi criado. Nele, uma pessoa ligava para uma imobiliária e dizia que queria colocar uma casa para ser alugada. Mas fazia um alerta: não queria que fosse para estrangeiros, algo ilegal.

Para a surpresa dos autores do estudo, 72% das imobiliárias aceitaram promover a discriminação contra imigrantes e colocar a condição no próprio anúncio.

Entre as demais, 80% sugeriram uma manobra: não poderiam colocar essa condição no anúncio. Mas prometeram que fariam o filtro ao receber a ligação de eventuais interessados.

Revelador é também o resultado de um estudo elaborado na Espanha pela Associação de Mulheres Cineastas e de Meios Audiovisuais. Em 2022, o levantamento indicou que a maioria dos papeis encarnados por intérpretes imigrantes se refere a pessoas com empregos de baixa qualificação. Putas e empregadas domésticas, entre outras. Quase nunca empresárias, poetas ou cientistas.

O que me chama a atenção é que isso tudo vem ganhando força num momento no qual o movimento de extrema direita contamina o debate com uma declarada vontade de se apresentar como brancos e cristãos. Será que é isso o conceito de “ser europeu”?

Deixe eu lhes contar uma anedota. Aqui do norte da Europa, meu filho, na época com apenas seis anos, questionou um certo dia seu avô espanhol se era ruim ser?espanhol. Assustado, o senhor sequer entendeu a pergunta.

Eu decidi seguir a conversa para ver para onde iria.

Sua resposta: “meus amigos na escola não me deixam brincar com eles, dizendo que eu sou espanhol. Que não sou daqui”.

Sim, amigos. A discriminação é insuportável, inadmissível e criminosa.

O passado colonial que enriqueceu a Espanha e uma elite brasileira precisa ser lidado. Não há mais o que esperar. É intolerável.

Há ainda uma enorme carga de hipocrisia no Brasil ao se indignar com a situação de Vini Jr, enquanto a arquitetura de prédios de luxo repete a mentalidade escravocrata ao sempre prever um “quartinho de empregada” sem janela, carteira assinada e nem dignidade. No meu país, o racismo é estrutural e sistêmico. É a grande dívida do estado e da sociedade brasileira.

Nós brasileiros, portanto, não temos lição a dar. Apenas compartilho com vocês alguns dos elementos que, nos últimos 20 anos, começaram a transformar o Brasil.

Abram vocês também o debate: o que ocorre na sociedade, na educação e nas leis para que Vini Jr. seja alvo de tanto racismo?

Por qual motivo houve uma reação de parte da sociedade de recusa em aceitar que o problema era profundo?

Questionem o impacto que aquilo tem num garoto negro, no dia seguinte, no pátio do recreio.

Por qual motivo vocês acham que as repercussões e a indignação foram globais e gerou até uma reação da ONU?

Venho aqui, portanto, propor reflexão, insurreição e ação. Nos tribunais, nas leis, nos estádios e nas escolas.

Enquanto isso, que Vini Jr. continue sambando na cara dos racistas. Brasileiros e espanhóis.

Vamos?

Saudações democráticas,

Jamil

-+=
Sair da versão mobile