Carta às historiadoras e aos historiadores do futuro: “negros” não são etc.

Na última terça-feira, dia 30 de maio, o movimento negro brasileiro teve uma vitória histórica marcada pela adoção das cotas raciais e sociais no sistema de ingresso dos cursos de graduação da Universidade Estadual de Campinas. Passada quase uma semana do ocorrido, nos vem à mente algumas lições sobre história e memória das quais nos lembra o historiador Thomas C. Holt.

Foto de Rafael Kennedy

Por Taina Aparecida Silva Santos Do Negro Belchior

Segundo ele, o cotidiano é o campo no qual os indivíduos aplicam os seus meios (Cf. HOLT, Thomas C. Race, race-Makingandwritingofhistory. In: The American HistoricalReview, vol. 100, n. 1, Feb. 1995), e, haja vista as já demonstradas seletividades nas narrativas em torno da luta pela implementação das cotas na Unicamp, podemos enxergar algumas facetas do racismo que permeiam a nossa vida social, o imaginário coletivo e que continuam demonstrando o quanto a reivindicação de um protagonismo negro ainda é vista como um problema.

Dessa maneira, entre alguns alertas, gostaríamos deixar um recado para os historiadores e historiadoras do futuro: nem todos os nossos contemporâneos que se sensibilizam com a necessidade das cotas raciais no Brasil estão comprometidos com a derrocada da desnaturalização de ideias e práticas racistas.

Esses indivíduos podem ser simpáticos e polidos; podem se esforçar para se comportarem bem quando andam entre nós, entretanto, isso não significa, ainda, que estamos vivendo uma “primavera negra” na bolha campineira.

Muitas e muitos ainda comemoram em ares de triunfo uma greve que terminou vitoriosa. É óbvio, mas não parece, que um número considerável de negras e negros, infelizmente, têm pagado caro, há anos, para que isso se tornasse possível.

Alguns com sua vida ou a saúde mental, outros com o comprometimento da realização dos seus trabalhos de pesquisa, e outros tendo seus sonhos ameaçados a troco de uma punição “exemplar”.

Entretanto, quando se conta a história do triunfo sem as pessoas, ela simplesmente se embranquece e, num contexto em que a implementação das cotas na Unicamp representa uma vitória não só para o movimento negro, mas também para a esquerda, que pouco contribuiu nesse processo, as memórias sobre ocorrido se dão de maneira bem seletiva apagando a história da presença negra e fazendo ode à branquitude convertida e ressentida pelo privilégio que possui. Enquanto isso, um ou outro negro é lembrado e os outros virão etc.

A indiferença perceptível em relação em relação à existência de um Núcleo de Consciência Negra na Unicamp e até de um movimento negro organizado não só no Brasil, mas na cidade de Campinas faz coro aos agradecimentos e saudações àqueles que permaneceram agarrados ao conforto da branquitude até não ter mais escolha a não ser se posicionar em relação a necessidade de implementação da política de cotas em um dos bastiões do atraso do ensino superior público brasileiro.

De maneira que, fica difícil não nos incomodarmos com comentários desonestos, oportunistas e algumas notas que mais têm puxado sardinha para algumas organizações que pouco contribuíram para que uma mudança como essa fosse possível e ainda têm comprometimento limitado no que se refere ao combate ao racismo.

Algo grave, pois, se há um ensinamento que a história social nos proporciona é que basta suprimir a existência de algumas pessoas e, consequentemente, as experiências cotidianas nas quais elas estavam inseridas, que está feito um silêncio na história.

O descaso de que falamos é tamanho que, recentemente, ao participarmos da organização de um atividade sobre cotas a convite de uma associação que atua na universidade, quando propomos que um dos integrantes do grupo de estudantes negros participasse do debate foi dito que era necessário checar se algum de nós “estávamos à altura” para estar entre as debatedoras e debatedores.

E, apenas para fins de registro, essas palavras vieram da boca de um desses doutores de esquerda que ainda a alegava a necessidade de ser convencido que as cotas eram algo importante para universidade. Mas, enfim “deixa para lá, né???? É só o jeito dele lidar com conformações políticas contemporâneas”.

Outra memória que não pode passar em branco para as futuras análises das historiadoras e historiadores do futuro, é um evento que se passou no Festival Pela Implementação das Cotas na Unicamp, que ocorreu no dia 29 de março.

Ao lado da Frente Pró-Cotas da Unicamp, fizemos uma campanha financeira, na qual uma série de pessoas, sindicatos, entidades estudantis e etc. contribuíram para que pudéssemos bancar a estrutura do evento. As parcerias estavam muito boas, até que um dos membros da União Estadual dos Estudantes – UEE, usou das mais diversas formas da ignorância para impossibilitar nosso contato com uma das artistas e no meio do show dela, além de estender a bandeira desse grupo político sobre as caixas de som que estavam no palco, pediu para que artista agradecesse exclusivamente à organização que ele fazia parte. “

E o empenho dos ‘negros’?” Se perguntarão os historiadores do futuro! Não queremos jogar um balde de água fria, mas informamos que não foi algo lembrado naquele momento, da mesma forma que o rapaz também não lembrou que a organização dele contribuiu com, apenas, um quarto do dinheiro que conseguimos arrecadar para realização do festival e do ato que ocorreu no dia 30.

E, mais uma vez, só para fins de registro, isso ocorreu após uma atividade do Festival que tinha como intuito contar a história de Raquel Trindade, uma das pioneiras na discussão de cotas na Unicamp, que contou com alguns dos nossos mais velhos que há anos se dedicam a manter de pé o movimento negro de na cidade de Campinas.

Caras historiadoras e caros historiadores, à primeira vista, quem lança os olhos sobre a acalorada discussão no conselho universitário, pode imaginar que a luta pelas cotas se deu em uma disputa com o alto escalão e a burocracia universitária. Doce engano! O grosso do problema não foi a elite universitária, mas, sim, o que ela exalava nos campi da Unicamp.

A preocupação com a “excelência acadêmica” parecia justificar a ausência de parte significativa da população pobre, negra e indígena, o orgulho “unicamper” era um perfume impregnado nas roupas dos playboys que viam seus lugares na Unicamp, como um direito natural e inalienável. Na contramão deste pensamento, disputamos consciências e questionamos a genialidade e o mérito de quem sempre teve acesso a tudo, e que insistiam em nos colocar em uma posição de igualdade com argumentos de que “somos todos humanos”, como se partíssemos de lugares semelhantes, de um mesmo ponto de partida.

Foto de Rafael Kennedy

Após muitas atividades, desde a greve de 2016, a política central da movimentação política feita pelos estudantes da Unicamp (não colocamos os movimentos estudantis, pois parte considerável brota apenas nos momentos de campanha para o DCE) foi a reivindicação das cotas. Esta terra, que parece dar os primeiros frutos em 2019 (ano que deve chegar os primeiros estudantes cotistas), foi preparada há alguns anos com a criação do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp e da Frente Pró-cotas da Unicamp.

Ressalta-se a dificuldade de sensibilização do conjunto dos estudantes, sobretudo das entidades estudantis que sempre se colocaram como barreiras, seja com a falácia de que cotas era algo trivial ou como verdadeiros embustes que atravancavam as discussões e decisões.

Nós do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp fomos apontados como “reformistas”, “apoiadores da reitoria”, “movimentos cooptados pelo PT” e até mesmo chamado de fascistas por: ousarmos disputar assembleias sem estar ligados a partidos políticos; apontar as manobras e burocratização no movimento; elevar o nível do debate, não nos contentando com a  leitura de panfletos essencializadores; reivindicar lugar na mesa de negociação quando as discussões girassem em torno das pautas de acesso e permanência; propor as cotas como tarefa central, entendendo que o reitor, sob nenhuma circunstância, poderia implementar as cotas sem consentimento do Conselho Universitário, logo propor as audiências e uma institucionalização desta discussão, ao lado da mobilização dos estudantes e por fim, ter legitimidade e confiança dos estudantes e dos movimentos sociais da cidade.

Historiadores do futuro, as próprias lacunas e omissões dizem muito sobre este processo e sobre as nossas estruturas sociais. Não à toa, o esquecimento/apagamento de intelectuais como Virginia Leone Bicudo, mulher negra que trouxe a psicanálise para o Brasil e produziu um belíssimo texto no Projeto Unesco ou Ruth Landes, judia norte-americana que, na década de 40, escreveu sobre a presença de homossexuais em cultos afro-brasileiros no Brasil, ousando adentrar em uma área de estudos dominados por homens brancos – os “Estudos do Negro”- nos informam sobre a necessidade de criar nossas próprias narrativas. Narrativas de presenças e não de sombras, pois o racismo e o sexismo ignoram, amenizam ou, como nas palavras de Janaina Damasceno, acinzentam as nossas trajetórias.

Como já foi dito, nós viemos para bagunçar os lugares da mesa. “Nós”, neste contexto, queremos nossos verdadeiros iguais por aqui.

“Nós” temos nomes, “nós” temos cor. “Nós” não nos calamos diante de narrativas que nos retirem de cena. Na medida em que não é razoável ter uma bicha preta de vestido curto no conselho universitário, diante de olhares furiosos, se fazendo presente com a maior quantidade de falas e com os mais longos discursos, ter um estudante negro que enfrenta uma suspenção e decide estar presente na frente de quem sustenta tal injustiça ou ter uma representante dos movimentos negros da cidade lutando pelas cotas em um lugar tão hostil, por exemplo, sendo “esquecidos” nos relatos, resumos e créditos desta conquista, sendo que pessoas que repetem o que dizemos há anos e sequer abrem a boca, e até mesmo o novo reitor são fortemente parabenizados por uma falaciosa “heroica atuação em defesa da diversidade”.

Por fim, vale a pena repetir que nossos questionamentos ocorrem no contexto da conquista das cotas étnico-racias em uma universidade que se vangloria como sendo “de ponta”, mas, que ainda assim, admitiu a ausência de argumentos qualificados em um debate tão importante, uma nítida concessão à brancura.

Por isso, é preciso compreender que em termos de epistemologia, nossa luta ainda está longe de acabar: a uma semana da votação no conselho universitário, nós, negras e negros, por mais vitoriosos e competentes precisamos, infelizmente, registrar que não seremos complacentes com narrativas que nos coloquem como “e-t-ceteras” da história e nos lancem para as pequeníssimas e raramente-lidas notas de rodapé!

Saudações do nosso tempo de Bruno Nzinga Ribeiro e Taina Aparecida Silva Santos.

Taina Aparecida Silva Santos – Graduanda em História no IFCH/Unicamp – Militante do movimento negros do movimento de mulheres negras da cidade de Campinas e Bruno Nzinga Ribeiro – Graduando em Ciências Sociais no IFCH/Unicamp/Militante dos movimentos negro e LGBT.

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