Julgamento é denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: mulher foi condenada porque seu marido matou o filho caçula quando ela não estava em casa
por Silvia Lisboa no Revista Galileu
A gaúcha Tatiane da Silva Santos estava trabalhando numa padaria em um domingo, 29 de setembro de 2013, quando seu marido, Amilton Martins, torturou e matou o filho caçula. Diogo tinha apenas um ano de idade. Amilton foi condenado a 42 anos de prisão pelo homicídio, e Tatiane ganhou uma sentença de 24 anos por omissão e tortura mesmo sem estar presente no momento do crime. Presa dias após a morte de Diogo, ela também perdeu a guarda dos filhos mais velhos, Gabriel e Gabriele, antes mesmo de ser condenada por um júri composto de sete mulheres em novembro de 2016. A GALILEU contou a história do julgamento de Tatiane em reportagem de capa publicada na edição de março.
Agora, a ONG argentina Xumek, especializada na promoção de direitos humanos, entrou com uma denúncia contra a atuação do Poder Judiciário, o Ministério Público e o Conselho Tutelar do Rio Grande do Sul. De acordo com a organização, o caso Tatiane é um exemplo flagrante de violação de direitos essenciais e misoginia. Segundo a petição, o julgamento de Tatiane violou tratados de direitos humanos internacionais, a exemplo da Convenção de Belém do Pará, como ficou conhecida a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher, de 1994, da qual o Brasil é signatário.
“O julgamento de Tatiane coloca a mulher como a única responsável dos filhos, sem levar em consideração que seus filhos estavam aos cuidados do pai e era ela quem estava trabalhando. Seria inimaginável que condenassem o pai na mesma situação”, afirma Lucas Lecour, presidente da Xumek. “Deveriam tê-la absolvido por não ter, nesse momento, nenhuma posição de responsável, já que o pai se encontrava em seu papel de pai, e obviamente de cuidador dos filhos. Esse tipo de sentença não é normal num país ocidental. Pensar a mulher como responsável por estar trabalhando quando se dá o fato e condená-la com base num laudo psicológico é absurdo.”
Conforme a denúncia, não foi dada a Tatiane chance nenhuma de defesa, nem sequer nos recursos de apelação. Ela teve a pena aumentada em dois anos pelo desembargador Jayme Weingartner Neto. Neto se baseou em um laudo psicológico que considerou Tatiane “narcisista” devido sua insistência em ver os filhos no abrigo. Nesse ponto, a petição afirma que houve uma violação de artigo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que contempla o direito do réu de recorrer da decisão perante um juiz ou tribunal de segunda instância.
Pela análise do processo, fica claro, segundo a ONG, que o Tribunal de Justiça do RS não reavaliou provas do crime, apenas limitou-se a ratificar a sentença do júri e aumentá-la baseada em um julgamento moral, o laudo psicológico da ré. Com isso, Tatiane perdeu a chance de ter seu julgamento revisto na integralidade. Agora, seu pedido de recurso está com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se limita a analisar questões processuais e não admite reexame de provas. Como está em segredo de justiça, o STJ não divulga qualquer informação sobre o estágio da tramitação.
Conforme a denúncia, o tratamento dado a Tatiane durante seu processo e julgamento também teria ferido obrigações previstas no artigo 7 da Convenção de Belém, que detalha os deveres do Estado em amparar mulheres vítimas de violência doméstica e pobres. Tatiane foi quatro vezes para um abrigo que recebe mulheres vítimas de violência doméstica. Na penúltima vez, foi aconselhada pelo juiz a “dar uma segunda chance” ao marido. O magistrado não aplicou nenhuma medida protetiva para resguardar ela e as crianças. O Conselho Tutelar também não afastou Amilton dos filhos. Depois que o crime ocorreu, porém, o Estado foi “implacável”, segundo a denúncia, aplicando uma pena de homicídio qualificado sem que Tatiane tenha sequer presenciado os maus-tratos, que levaram à morte o filho caçula.
Negligência do Estado
Quem atua no atendimento de vítimas de violência doméstica, porém, tem outra visão sobre a dificuldade de sair de um relacionamento regado a ameaças. A psicóloga Luísa Habigzang, que atende mulheres na espera das audiências da Lei Maria da Penha em Porto Alegre, diz ser normal buscar ajuda várias vezes. “O Poder Judiciário negligencia o sentimento das pessoas. A pessoa não vira uma chave e esquece de uma hora para outra alguém que era significativo para ela. Não é algo rápido, é um processo”, diz.
Segundo a psicóloga, geralmente mulheres vítimas de violência doméstica tiveram um histórico de maus-tratos e abandono na infância. Essa situação tem um impacto na formação da autoestima. “São pessoas que não se acreditam dignas de serem amadas”, afirma. Na vida adulta, esse desamparo faz com que elas minimizem e até banalizem episódios de abusos psicológicos e físicos. Isso se reflete também na demora em acessar a rede de apoio público ou até mesmo a família, que costuma virar as costas. “Quando você cresce apanhando, você interpreta tapas como normais”, observa Habigzang, professora da PUC-RS.
A interpretação do MP-RS no caso foi oposta. A procuradora Sônia Mensch, que acusou Tatiane de omissão pela morte de Diogo, considerou que a gaúcha teve as chances de largar Amilton, mas não o quis por teria uma “dependência sexual” do marido.
Tatiane foi vítima de maus-tratos desde a infância. Os pais, viciados em drogas, a deixavam sozinha em casa cuidando do irmão menor. Ela tinha apenas 9 anos e precisava atender uma criança de 4 que mal conseguia carregar no colo. Não lembra de receber carinho. Um dia, implorou a mãe que prestasse atenção à sua cabeça, coberta de feridas, resultado de uma infestação de piolhos não tratada. Ela estava com febre, ínguas no pescoço e berne (larvas de mosca que se hospedam em lesões abertas). “A mãe me bateu, cortou todo meu cabelo e jogou um remédio azul que até hoje não esqueço”, contou em entrevista no presídio Madre Pelletier, em Porto Alegre. Com a cabeça ardendo e aos prantos, a menina saiu de casa e foi pedir ajuda a uma vizinha, que a levou até a casa de sua avó materna. Tatiane nunca mais voltou para casa dos pais. “Eu era uma criança jogada na rua.”
Lucas Lecour, presidente da ONG Xumek, afirma ficar claro que os órgãos e o judiciário brasileiro não levaram em consideração a condição de Tatiane como vítima de violência familiar e doméstica. “Desde a intervenção administrativa a partir das denúncias até a investigação judicial – incluindo a acusação pelo Ministério Público e o julgamento em duas instâncias judiciais –, achamos paradoxal essa tímida intervenção por parte do Estado no âmbito de proteção da família em situação de violência, em contraposição à implacável aplicação da lei penal aos ‘autores’ do crime que ocorreu, entre outros fatores, pela ingerência estatal naquele campo”, destaca a denúncia.
A Xumek constatou que o julgamento descumpriu o “dever da devida diligência”, contido no artigo 7, inciso b, que impõe como obrigação ao Estado prevenir, investigar ou sancionar os casos de violência contra a mulher; “dever de proteção judicial” (art. 7, inc. d), de “procedimentos justos e eficazes” (art. 7, inc. f) e o de “reparação” (art. 7, inc. g), previstos na Convenção de Belém.
Presa desde novembro de 2013, Tatiane sofre com a distância dos filhos. Vivendo num abrigo municipal, Gabriel e Gabriele foram adotados neste ano depois que o juiz Daniel Englert Barbosa proibiu as visitas da bisavó materna – a avó Vera Lúcia, que criara Tatiane desde os 9 anos – e os colocou no cadastro de nacional de adoção. A avó não teve condições financeiras de ficar com as crianças, mas as visitava regularmente.
Barbosa entendeu que Vera Lúcia abriu mão da guarda das crianças. “Afastar as crianças da mãe ou da família é uma decisão de último caso”, diz a promotora Ivana Battaglin, da Promotoria Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do MP gaúcho. Battaglin foi uma das primeiras a dar visibilidade ao caso Tatiane com um artigo na revista do MP gaúcho.
Procurada por GALILEU, a Secretaria Municipal de Saúde, responsável pelo Conselho Tutelar citado na denúncia, disse que não iria se manifestar. O TJ-RS alegou que não comenta decisões. O MP-RS enviou a seguinte nota por meio de sua assessoria: “O Ministério Público reitera que, no caso em questão, o Tribunal do Júri, soberano, promoveu a condenação da acusada, decisão que foi mantida pelo Tribunal de Justiça. Dessa forma, a consistência das provas apresentadas foi reiterada não apenas pelo corpo de jurados que atuou no caso, como pela instância superior de julgamento.”
“O sistema judiciário é machista, misógino. Não está preparado para as questões de gênero”, diz a promotora Ivana Battaglin. “O Estado falhou com Tatiane desde a infância. E continuou falhando com ela.”