“Chá de revelação da raça”: Clube Palmares e a agência negra em Volta Redonda

FONTEPor Leonardo ngelo da Silva, enviado ao Portal Geledés
Leonardo ngelo da Silva

A sentença utilizada no título é de Adelaide Maria Afonso Máximo, professora da rede pública, militante do movimento negro e fundadora do Movimento de Conscientização do Negro de Volta Redonda. A professora soltou esta sentença durante sua participação no curso antirracista do Clube Palmares. Considerou que a cidade de Volta Redonda necessitava de um “chá de revelação da raça”, coisa que o Clube Palmares está a fazer desde seu surgimento, mas que muitos não “escutam” ou “veem”.

A história do Clube Palmares começa em 1965, no dia 31 de janeiro, quando um grupo de pessoas negras, todas ligadas à maior siderúrgica da América Latina (a Companhia Siderúrgica Nacional – CSN), se reuniu e fundou o primeiro clube majoritariamente negro do Sul fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Segundo alguns fundadores, houve um debate para a escolha do nome do clube e os sugeridos foram: 13 de maio, 15 de novembro, Feniano e Palmares. Os mesmos relatos informam que a defesa do nome Palmares foi muito bem feita por Therezinha Santos Dias, pois de família oriunda de Sergipe, sabia da potência do Quilombo dos Palmares, de Zumbi e do simbolismo que toda essa história envolvia.

Ao estudar Volta Redonda e sua classe trabalhadora, tema de minha tese de doutoramento, acabei por entrevistar várias pessoas que frequentaram e/ou participaram da fundação do Clube Palmares. E em vários relatos a mesma história se repete: a CSN possuía vários clubes associativos que eram frequentados de acordo com a profissão e função dentro da empresa (Clube dos Funcionários da CSN, 1942;  Aero Clube, 1943; Clube Náutico e Recreativo Santa Cecília, 1948; Clube Recreio do Trabalhador, 1951). Assim, a divisão social da classe trabalhadora acabava por refletir a divisão racial da mesma.

O problema é que a partir do início da década de 1960, com o desmontar da estrutura para a classe trabalhadora da CSN, as fissuras de classe e raça começam a crescer. Iniciou-se um processo de proibição da entrada de pessoas negras, mesmo que trabalhadoras da própria empresa, nos seus clubes associativos. Pelo que parece, a proibição da entrada de pessoas negras ocorreu de maneira não oficial, pois nenhum documento e/ou ata com a instrução de proibição foi encontrada, mas os relatos de “não pode entrar” e boatos de que deveriam “tirar as pessoas negras dali” estavam sempre oficiando o não oficial.

Uma das folhas da lista de associados ao Clube Palmares. Volta Redonda, anos 1960. Fonte: Acervo do Clube Palmares de Volta Redonda.

Diante das proibições e da falta de local para a interação e lazer de trabalhadores e trabalhadoras negras, estes começaram a pensar em uma solução. Foi sob essa situação que Maria da Glória de Oliveira (Dagó), João Estanislau Laureano e Nazário Ernesto Santos Dias tiveram a iniciativa de pensar na criação de um clube. Dagó foi a primeira professora negra de Volta Redonda e está no livro ata do clube com a matrícula número 3; João era funcionário da CSN e tinha a matrícula número 4; Nazário foi um dos primeiros engenheiros negros da mesma usina e, no Clube, era matriculado com o número 1. Lúcio Andrade, primeiro presidente do Clube Palmares, está no mesmo livro e era a matrícula número 2. A Ata de Associados sempre traz a matrícula do Palmares (CP), mas a imagem acima demonstra que, para a maioria dos associados, o número da matrícula na CSN também era importante. 

O Clube Palmares evidenciou a fissura no discurso alinhado com o mito da democracia racial que se disseminava à época, pois tanto o governo ditador quanto a empresa o pregavam, ainda que por metodologias diferentes. Enquanto a CSN trabalhava com um discurso de “família siderúrgica”, em que visava englobar trabalhadores e famílias atreladas a ela numa lógica de irmandade perante a empresa-mãe, numa perspectiva muito próxima do ideal de democracia racial, a Ditadura Militar negava os problemas raciais brasileiros e defendia a “paz das cores”, chegando mesmo a tirar os dados raciais das estatísticas governamentais dos anos 1960 e 1970, ou seja, reforçando o ideal de democracia racial no país. Não por acaso, Flávio Gomes e Marcelo Paixão, deixam no ar que “o modelo desenvolvimentista acabou sendo forjado utilizando como motor ideológico o próprio mito da democracia racial”.

Membros da Diretoria, Conselho Deliberativo e Coral Palmares: João Laureano, José Gomes, João Linhares, Elza Timóteo, Jorge Timóteo, Terezinha, Dagó, Messias de Paula, Eloidmar (Loló), Lúcio Andrade, Alice (esposa de Elpídio), Mário, Aparecida, José Elias, Geraldo, Antônio, Carlos Félix (Jaú), Fernando, José Nicodemos. Volta Redonda-RJ, anos 1960. Fonte: Acervo Fotográfico do Clube Palmares.

Um ideal é composto de ideias e, por vezes, só existe no pensamento mesmo, pois a realidade é uma confrontação a ele. Esse é o caso da democracia racial que pretensamente imperava no país e, em especial, em Volta Redonda. Vejamos o que o depoimento do atual presidente do Clube Palmares nos ajudou a encontrar. Edson Daniel João (o Mister) nos deu uma entrevista para o projeto Companhia Siderúrgica Nacional: violações de direitos e responsabilidades, vinculado à Universidade Federal Fluminense, no âmbito do edital “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, coordenado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da UNIFESP. Nela, Mister nos falou de “infiltrados” dentro do Clube durante a Ditadura Militar e que havia a orientação de ficar de olho nos diferentes que apareciam e “perguntavam muito”. Disse, ainda, que às vezes as máscaras caiam, pois com a circulação do “povo do Palmares” (a militância era muito ativa), por vezes, encontraram os “perguntadores” não à paisana, mas fardados, em outras localidades do Rio de Janeiro e aí ficava difícil de negar o que se via.

Com base no depoimento de Mister e de outros entrevistados, foi sem muita surpresa que ao aprofundarmos as pesquisas, encontramos no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) registro sobre o Clube Palmares feito pela polícia política. A questão é que por debaixo do mito da democracia racial havia muita polícia política e vigília para com as vozes dissonantes, consideradas subversivas, e o Clube era uma delas.

O Palmares sempre atuou na visão de espaço de entretenimento e formação, não era apenas  um clube dançante. Exemplos são vários, mas gostaria de citar uma ação que Gisele da Cruz Siqueira Costa, pesquisadora e psicóloga, encontrou na ata da Comissão de Festas. Para as comemorações de 1969, do aniversário do Clube, houve uma reunião (14/12/1968) em que os diretores e diretoras traçaram planos e entre as atividades listadas para ocorrer entre os dias 25 e 30 de janeiro estão: “vôlei feminino”, “churrasco”, palestra sobre “a influência dos ritos africanos em nosso catolicismo”, “Noite da Juventude Palmarina” e no dia 31, aniversário do Clube, uma palestra especial com o “conferencista Abdias do Nascimento”.  Contudo, Abdias não se apresentou no Palmares, pois no final de 1968, foi agraciado com uma bolsa da Fairfield Foundation para entidades culturais negras nos Estados Unidos. O planejado era ficar poucos meses, mas com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que endureceu ainda mais o regime ditatorial no país, Abdias acabou vivendo no exílio por treze anos.  

Maria Eunice dos Santos Dias – ou Nice Nazário, como ficou conhecida artisticamente (pois também era artista plástica) – foi ex-presidenta do Clube e esposa do engenheiro Nazário, relata em entrevistas que Abdias e, principalmente, Lélia González estiveram mais de uma vez no Palmares. Ela falou das ideias políticas debatidas no Clube e dos passeios pela feira da cidade que Lélia tanto gostava.

O Clube Palmares sempre esteve aberto às demandas sociais da cidade e de seu entorno. Como nos lembrou o atual presidente, talvez seja o único clube da cidade a ter feito e continuar fazendo isso. Você pode conferir as últimas atividades do Clube conferindo o seu Instagram. Ademais, ao longo de sua história, o Clube participou de vários debates (de movimentos sociais, de movimento negro, formação partidária, pastorais, de ações na cidade, etc.), bem como fomentou o debate político entre candidatos/as, recebendo-os para questionamentos e apresentação de demandas, portanto se colocando como referencial para a sociedade civil, chegando a ter, inclusive, um pré-vestibular aberto à comunidade. Contudo, se a ação é grande, a perseguição também esteve ao seu lado, e o Palmares possui, no seu acervo, uma volumosa pasta de processos.

Os documentos da pasta revelam que sempre houve questionamentos e suspeição para o Clube, de “pessoas suspeitas” a “movimentos suspeitos”; denúncias anônimas e não tão anônimas se avolumaram no Ministério Público. Em 1985, o Clube teve seus muros derrubados pela Prefeitura de Volta Redonda, a pedido dos moradores do bairro que alegavam desleixo com o local e queriam sua remoção, contudo, a direção conseguiu comprovar a aquisição do terreno e o muro foi reconstruído no ano seguinte. O bairro sofre um processo de gentrificação e o endereço do clube, paradoxalmente, se localiza no bairro Jardim Europa, sem número, entre as ruas Paris e Roma.

Nas palavras do atual presidente, o Clube Palmares é um “quilombo urbano”, “solo sagrado da resistência” e se nos sensibilizarmos com um endereço tão eurocêntrico… Bota solo sagrado e de resistência nisso!

Assista ao vídeo do historiador Leonardo Ângelo da Silva no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF03HI12 (Comparar as relações de trabalho e lazer do presente com as de outros tempos e espaços, analisando mudanças e permanências); EF09HI07 (Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes); e EF09HI01 (Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país)


Leonardo Ângelo da Silva

Telefone: (24) 99931-5369

Doutor em História Social pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

E-mail: leoangelo.prof@gmail.com

Instagram: @leoangelo.prof


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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