Samantha Tavares, o voo 1575 e o mercado de (des)almas chamado Brasil.

Um corpo negro incomoda pela simples existência. Um corpo negro incomoda muito mais quando ocupa espaços que tradicionalmente são associados a sua presença. Despertando sempre reações desmedidas e insensatas daqueles que estranham essa circulação de indesejáveis por lugares a eles restritos, ou até mesmo impedidos, por uma série de barreiras históricas e econômicas de nosso país.

Filtragens sociais de teor racista, que fazem parte de nossa formação como projeto de nação, que revelam o pior e mais vil de nossa sociedade. Características que desnuda os padrões discriminatórios que regem os cotidianos de nossas relações socioculturais. Situação que se agrava quando temos incorporado misoginia, a tal realidade. Racismo, discriminação social e machismo, organicamente articulados e potencializados em seus efeitos, que muito nos explicam o aumento em exponencial das práticas de violências exercidas contra as mulheres, em especial as negras, nos últimos tempos no Brasil. 

Uma era em que parece haver uma naturalização, quando não orgulho, em ser racista e manifestá-lo abertamente sem medo de qualquer restrição ou condenação. Em que muitas vezes se condena e se combate as pessoas que manifestam repúdio e contestação a tal prática, como se o crime fosse ser contra a defesa e a prática do racismo, e não o contrário. Como se devesse haver uma parcimônia e boa vontade ante aos atos racistas, sempre justificados por alguma lógica absurda, e ao mesmo tempo uma atitude sempre cruel e cínica, quando não belicosa em relação as vítimas de nossas mazelas discriminatórias.

Realidade que se mostra em casos como o da madrugada de sábado (29/04/2023) em que momentos antes do início de sua viagem, a passageira Samantha Vitena, acabou por ser retirada do voo 1575 por policiais federais a pedido da tripulação e comandante da aeronave por ela se recusar a seguir as normas sobre despacho de bagagens. Sendo que a mesma, um notebook, enquanto bagagem de mão, já havia sido alocada nos compartimentos devidos. Sem nenhum transtorno gerado com os passageiros, que já se encontravam todos a postos para o início da viagem. Ao momento em que irrompe ao compartimento, um quarteto de agentes da lei requerendo o desembarque imediato de Samantha, sem lhe revelar o motivo de tal ordem.  O que acabou por dar início a um processo de questionamentos, em relação ao porquê de tal medida excessiva e sem que qualquer justificativa fosse a ela exposta.

O que nos faz pautar ante tal situação, que:

– pelas testemunhas ali presentes, uma passageira branca, havia desrespeitado pedido da tripulação em não colocar uma de suas malas no bagageiro, o que ela prontamente se negou, mesmo com a insistência da tripulação para assim não agir. E pelo que consta, não houve convocação dos policiais federais para sua retirada do voo, pelo contrário, havendo até uma tolerância em demasia ante a situação de afrontamento e tensão gerada pela recusa da passageira;

– é comum a quem viaja de avião que as bagagens de mão acabem acomodadas em seus devidos compartimentos, por vezes até com auxílio da tripulação visando o melhor bem-estar possível ao passageiro, quando muito sendo solicitado que a bagagem seja colocada embaixo de um dos bancos de passageiros. Uma boa vontade e interesse que não se fez exercer em relação a Samantha;

– você sofrer o constrangimento público de ser retirada de sua viagem, por agentes federais, e sem ser informada do porque de tal situação é no mínimo de uma insensibilidade e falta de tato absurda. Mesmo diante da negativa e apelos dos passageiros que ali estavam, atestando o excesso daquela ocorrência;

– a omissão da tripulação e do comandante do avião, que não se dispuseram em acompanhar o desenrolar da situação, nem para pautar os fatos a passageira diretamente envolvida, e nem aos demais passageiros. Numa postura de desprezo total, ou de incapacidade argumentativa para justificar toda aquela situação que ali se formou.

O que ficou bem colocado nessa história, é que desde o seu início, como postam as várias reportagens realizadas até então e pelos diferentes depoimentos das pessoas ali presentes, desde o início da situação, Samantha optou em buscar o diálogo e buscar o bom-senso para dar fim a qualquer possível mal-entendido. Sempre recebendo negativas puras e simples, em tom de ameaças, de que não poderia seguir viagem se insistisse em não obedecer ao que lhe estava sendo ali imposto.

Em nenhum momento, em nenhum instante ela foi vista e tratada com empatia, com respeito e boa vontade. Não lhe foi dada nenhuma tratativa com o mínimo traço de humanidade. Sendo vista e tratada como uma coisa, ser sem razão, sem sentimentos ou direitos. Apenas um corpo negro, de uma mulher negra, que teimava em não se adequar ao que consideravam como o devido lugar, como ao seu “devido” padrão de concordância e submissão a ser seguido e executado. Pois vivemos em uma sociedade em que um corpo negro não pode falar, questionar, brigar, lutar… Muito menos tensionar e romper aos padrões estabelecidos! É muita audácia e petulância, em não aceitar aquilo que lhe foi mandado! Repito, aquilo que lhe foi MAN-DA-DO obedecer e seguir! Sendo que esse padrão de sociabilidade de concordância irrestrita e autoritária, não foi aplicado – no mesmo voo – em uma situação até muito mais conflitiva do que a que houve, inicialmente, com Samantha. E sabemos o porquê tal diferença de tratamento se deu. Por que ela foi tratada, literalmente, como uma ameaça, sendo denominada como tal pelos policiais que adentraram a nave? Ou, há alguma dúvida nesse sentido?

Se tal absurdo não fosse gravado e testemunhado por inúmeras testemunhas, seria a palavra mais uma vez a palavra de uma pessoa negra contra a “versão oficial dos fatos”. Em que teríamos as mesmas difamações de sempre, típicas desses casos, dessas situações, com as pechas de “vitimismo”, “mimimi”, “lacração” sendo repetidas a exaustão, sem pudor algum. 

E no caso dela, enquanto mulher negra, os hediondos adjetivos de “histérica”, “raivosa”, “vingativa”, “destemperada”, “desequilibrada” já estariam adicionadas as narrativas dos fatos. O estereótipo da “nega maluca” nessa situação já estaria carimbado e vaticinado. Não importando sobre o que de fato aconteceu, e quem de fato é a única vítima em toda essa história. 

Mas, diante da repercussão do que de fato aconteceu, e se fez mostrar, no anterior do avião, a companhia área se viu obrigada a lançar uma nota pública oficial, em que não se dispõe nem a citar o nome de Samantha, mas a responsabiliza por todas as ocorrências que se deram, isentando totalmente sua tripulação por qualquer falha ou procedimento que possa ter ocorrido. Numa velha tradição brasileira de buscar desacreditar a versão da vítima, ao mesmo tempo em que age como se ela nem existisse. Como se fosse insignificante não só ela, mas como o ocorrido e que a empresa estivesse pouco se importando ante tal, possível, ocorrido.

Só que, em época de repercussão instantânea pelas mídias digitais, para além das fronteiras nacionais, e devido ao pronto posicionamento de repúdio e cobrança por medidas efetivas contra a prática racista que ali se deu, exercida tanto por entidades civis em geral, e em especial dos movimentos negros, quanto de órgãos públicos federais de gênero e antirracistas – como o Ministério das Mulheres – a Gol Linhas Aéreas lançou nova nota, agora citando Samantha por seu nome, sendo aparentemente solidária a ela, mas num padrão formal de destacar seu compromisso antirracista e contra qualquer tipo de discriminação, mas sem medida prática, ou anúncio nesse sentido, visando de fato contrapor-se ao que se deu no interior do avião.

Numa postura de parecer deixar o tempo passar para a história ser esquecida e tudo acabar em brancas nuvens, pois sabemos como esses compromissos de antirracismo se dão na prática no Brasil, na geração de mais e mais casos de racismo! O que nos parece ser uma nova forma de padrão de qualidade que se fez estabelecer em terras brasileiras, não é mesmo, Carrefour?

Triste e revoltante realidade, de sentimentos e ações nefastas de uma face do Brasil que insiste em não voltar para os esgotos… Para a penumbra e lixo de nossa história. Ou será essa a nossa verdadeira face enquanto sociedade? Ou será esse o nosso destino enquanto nação? Encarecidamente eu espero que não! Que sejamos muito mais do que isso a qual estamos, praticamente, todos os dias, sendo expostos e submetidos em nossos cotidianos!  

Nesse sentido, meu total e irrestrito apoio a Samantha, minha completa solidariedade a ela, e que a justiça lhe seja feita, de maneira plena e total! Afinal de continuamos sendo perseguidos, humilhados e mortos por aqueles que com uma mão nos violentam e com a outra redigem falsos – e infrutíferos – pedidos de desculpas, notas oficiais e “compromissos” que na verdade, nada resolvem! Cansados de termos nossa humanidade negada, sempre desrespeitada, extenuados de sermos sempre tratados como a carne mais barata desse grande mercado de (des)almas, chamado Brasil! 

Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.


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