Choremos pelas crianças que vão morrer a tiros de fuzil como Emily e Rebeca

Enviado por / FontePor Chico Alves, do UOL

É como se tudo estivesse previsto em um roteiro que todos temos que seguir. Primeiro a tragédia: as primas Emily, de 4 anos, e Rebeca, de 7 anos, são assassinadas em uma comunidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a tiros de fuzil. A partir desse flagelo, já sabemos tudo o que vai acontecer – e tudo o que não vai acontecer.

O crime ocorreu na noite de sexta-feira. Lídia Santos, avó de Rebeca, conta que voltava do trabalho e iria ao encontro das meninas, que a esperavam na calçada para cumprir a promessa de comprar um lanche.

Assim que desceu do ônibus, Lídia viu um carro da Polícia Militar. Em seguida, foram feitos os disparos. A avó e outras testemunhas acusam os PMs de terem atirado. Em nota, a corporação nega que os policiais tenham apertado o gatilho.

Um projétil atingiu Rebeca na cabeça.

Outro tiro acertou o abdômen de Emily.

A tentativa de amigos para salvar as duas foi inútil.

O desespero tomou conta dos familiares. Ao mesmo tempo em que choravam a dor de um acontecimento tão devastador, passaram a reivindicar a única coisa que os parentes de vítimas pedem em casos assim. Justiça.

Os vizinhos das meninas fizeram um protesto. Gritaram por justiça.

Emily e Rebeca foram enterradas ontem, ao som de pedidos de justiça.

A mais nova completaria 5 anos no dia 23 e teria como tema de sua primeira festa de aniversário desenho animado da Disney, Moana. Sem que ela soubesse, os pais tinham comprado a roupa da personagem. esse seria o seu presente. Emily foi sepultada com o vestido de Moana.

O pai da menina, Alexsandro, passou mal e teve que ser amparado. “Estou enterrando a minha filha, que não viveu nada”, lamentou o homem, entre lágrimas.

Como Emily e Rebeca, pelo menos outras 10 crianças foram mortas no Rio em 2020 por “balas perdidas” disparadas pelas armas de policiais ou traficantes envolvidos na guerra insana gerada pela ideia de que o confronto resolverá os problemas de segurança pública.

Outras dezenas de meninas e meninos morreram assim no ano passado. E no retrasado.

Pior: não é pequena a possibilidade de que outros pequenos morram pela mesma causa ainda este ano.

Com certeza muitos perderão a vida dessa forma no ano que vem. E nos próximos anos.

A morte de Emily e Rebeca motivará novos protestos, personalidades públicas farão pronunciamentos indignados, matérias e artigos jornalísticos (como o que você lê agora) serão escritos para marcar a tragédia.

As autoridades policiais prometerão investigação e punição rigorosa.

Cumprido esse roteiro, em alguns dias tudo terá voltado ao normal. Os dramas cotidianos dos moradores das comunidades serão novamente cobertos com o manto da invisibilidade e a vida seguirá seu rumo.

Até que a próxima criança negra e pobre seja atingida por mais um disparo e mais uma vez esse roteiro seja cumprido.

Esse futuro alvo, de quem ainda não sabemos o nome, pode estar brincando nesse momento, sorridente, perto dos pais e dos amiguinhos, na rua de alguma favela ou bairro carente da periferia.

Se vamos continuar seguindo o tal roteiro, além de chorar por Emily e Rebeca, podemos desde já chorar pela menina ou menino que será o próximo a engrossar a estatística macabra a que tristemente nos acostumamos, nesse país em que crianças morrem por tiro de fuzil.

Leia também: 

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...