No último ano, chamaram a atenção casos de tentativa de estupro e abuso sexual ocorridos nos trens do metrô de São Paulo e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Foram 65 entre janeiro e agosto de 2014 e 100 no mesmo período de 2015, segundo dados obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo – números que representam um caso de abuso a cada 48h.
Por Renata Mendonça Do BBC
Em 2014, causou polêmica uma propaganda do metrô paulista veiculada na Rádio Transamérica em que um personagem chamado Gavião diz gostar do trem lotado porque “é bom pra xavecá a mulherada, né mano?! (sic)”.
Tudo isso combinado à discussão da proposta de adesão ao famoso “vagão rosa” no sistema metropolitano de São Paulo – que significaria separar vagões exclusivamente para mulheres em horários de pico, como ocorre no Rio de Janeiro – levou Ana Carolina Nunes, de 24 anos, e Nana Soares, de 23, a decidirem fazer alguma coisa.
Elas não são funcionárias, são apenas usuárias do metrô há anos e se cansaram de ver casos de assédio ou abuso se multiplicarem nos vagões – Ana, inclusive, sofreu com esse problema quando era adolescente e não sabia como se defender. Hoje, ela é faixa preta de jiu-jitsu, mas não tem a mínima vontade de usar suas técnicas de luta para se defender de agressores sexuais no transporte público. Por isso, optou por procurar outros mecanismos para combater o cerne do problema.
“No começo do ano passado, estava muito em evidência, foram uns três casos de estupro em coisa de um mês”, disse Ana Carolina à BBC Brasil. “Me dava desespero porque, para mim, parecia muito óbvio que o Metrô e a CPTM só em se comunicarem já poderiam fazer alguma coisa. Uma simples campanha já causaria muito impacto, e eu pensava: será que eles não percebem isso?”
Jornalista de formação e pesquisadora de políticas públicas por interesse, Ana foi buscar ajuda primeiro com a colega de profissão Nana, também jornalista, e especialista no tema da violência contra a mulher. Juntas, elas procuraram o metrô para sugerir atitudes – e cobrá-las depois – de combate ao assédio nos vagões.
Mas a tarefa não foi tão simples quanto parecia. “A gente elaborou sugestão em três eixos: prevenção, responsabilização e foco na vítima. Eu achei que a gente ia fazer um documento, protocolar e pronto. Achei que ia apresentar, eles iriam entender e pronto. Não esperava que eles abrissem para eu discutir junto”, contou Ana.
Saga
Não foi bem assim. Desde quando fizeram as primeiras sugestões, em maio de 2014 – por duas vias: a ouvidoria do metrô e o canal de relacionamento –, até o dia em que a campanha foi para os vagões (agosto deste ano), passou-se quase um ano e meio.
“Uma coisa que pautou a conversa é que era preciso quebrar o mito de que o agressor no metrô é o maníaco do parque. Não é para falar com esse cara achando que ele é um psicopata”, disse Ana.
Leia Também
PLP 2.0 – Aplicativo para coibir a violência contra a mulher
“Tem gente que faz porque acha que isso é uma brincadeira. Então quando você faz uma campanha mostrando que isso é errado, quem faz achando que é brincadeira não pode dizer que não sabia que é errado. E argumentamos que era preciso também falar sobre a denúncia na campanha, que ela é uma ferramenta importante de combate.”
Nesse período, elas passaram por cerca de seis ou sete reuniões, participaram do primeiro treinamento com supervisores das estações, viram a gestão do metrô mudar após a eleição do governo estadual e chegaram a achar que o projeto iria por água abaixo.
“Eu me impressionei muito com a burocracia. A gente convencia um departamento e aí tinha que passar para outro. Isso me incomoda muito, foi quase um ano e meio entre falar com o metrô e a campanha ir para os trens”, disse Nana à BBC.
“Esse tempo não e o mesmo que o da usuária do metrô, não é o tempo em que o assédio acontece.”
Resistência
Na primeira reunião, ainda houve um pouco de desconfiança. “Percebi que o ponto mais crítico era fazer eles entenderem a gravidade da situação. Para algumas pessoas, isso parecia mais evidente, para outras, não. São empresas masculinas, dominadas por homens da base ao todo”, comenta Ana.
“Eu senti na primeira reunião isso de ‘quem são vocês? e o que estão fazendo aqui?’. Depois eles foram se acostumando e vendo que a gente entendia disso, do tema violência de gênero. Dá uma diferença gritante da primeira reunião com o primeiro treinamento. Tinha gente que achava que isso não era importante”, completa Nana.
Em uma palestra explicativa para supervisores de estações sobre o que é assédio e por que ele é ruim, elas contam que puderam ver estampado no rosto dos funcionários do metrô a surpresa com que receberam as informações.
“Foi falado que assédio não é elogio e etc. e, enquanto explicavam isso, víamos que as funcionárias mulheres concordavam, mas os homens não entendiam. É algo tão naturalizado que eles não entendem como isso pode ser uma violência. E isso não é no metrô, é em qualquer lugar”, contou Nana.
Com a aproximação das eleições estaduais, houve uma parada na evolução do processo, que só foi retomado em fevereiro deste ano – sempre acompanhado de cobranças das duas. Apesar de o governador Geraldo Alckmin ter sido reeleito, houve uma mudança de gestão, então foi necessário retomar as discussões.
Mudanças
Acompanhando de perto e de longe ao mesmo tempo – Ana Carolina e Nana não participaram da concepção da campanha na agência de publicidade, mas mantinham uma troca de e-mails frequente com o Metrô para saber o andamento do processo –, as jornalistas foram chamadas para participarem da campanha estampando uma das peças.
“Você não está sozinha. Estamos unidas contra o abuso sexual”, diz o cartaz que traz as duas junto com uma funcionária do Metrô e outra usuária do transporte.
No Metrô, a campanha está sendo veiculada por meio de cartazes distribuídos nas linhas azul, verde e vermelha, pelos monitores nos trens e também conta com a distribuição de panfletos nos horários de pico, além de divulgação diária nas redes sociais.
Segundo a Secretaria de Transportes Metropolitanos (STM), “no metrô, as manifestações pelo SMS Denúncia (97333-2252) passaram de 10 casos em 2013 para 62 em 2015 (de janeiro a agosto)”.
Ainda de acordo com dados oficiais, dos casos denunciados, “89% dos abusadores descritos pelas vítimas são detidos pelos agentes do Metrô e encaminhados para a Delpom, Delegacia do Metropolitano, órgão responsável pela investigação dos crimes no sistema metroferroviário paulista”.
Ana Carolina e Nana disseram que na CPTM a situação é um pouco mais complicada. Com menos verba, sem tantas câmeras monitorando os trens e com muitos funcionários terceirizados, fica mais difícil controlar e coibir o assédio. Na Companhia, a campanha só está sendo veiculada pelas rede sociais.
“Na CPTM não andou. Eles começaram campanhas nas redes sociais, mas nem sempre tem orçamento. Houve dois casos da CPTM em que o agressor era o próprio funcionário. E aí você pensa: por onde começar? Na CPTM, o sistema é falho, a segurança é frágil, não há câmeras em todos os trens, há um obstáculo estrutural.”
Ainda assim, a CPTM afirmou que recebeu 106 mensagens relacionadas a abuso neste ano e que, “em 98% dos casos, os molestadores foram identificados, encaminhados às delegacias e as usuárias registraram boletins de ocorrências”.
Como próximos passos, tanto Ana Carolina quanto Nana pensam em ver a ação que elas levaram para o Metrô virar efetivamente uma política pública para os transportes metropolitanos.
“Como essa ação não virou uma política pública, acaba ficando jogado para as empresas. No começo a gente falava: esse caso aconteceu na Barra Funda, e eles diziam: mas foi na parte da CPTM ou do Metrô? Você acha que se o cara sai correndo com o p**** pra fora atrás de mim, eu vou estar preocupada em olhar o lado da estação que eu estou?”, questionou Ana.
“Espero que isso seja o início de uma mudança de cultura interna do Metrô, que ele precisa também. Precisa de mais mulheres ali dentro. Não adianta fazer campanha bonita para o público, se dentro não faz nada”, afirmou Nana.