Como e quando você se tornou feminista?

Recentemente fui convidada para conversar com adolescentes negras/os, estudantes de escolas públicas que estavam reunidas/os num curso virtual de introdução à Cultura Afro-brasileira. Uma iniciativa do Coletivo Re-Existência Nzinga Calabar, um projeto político literário desenvolvido a partir da periferia soteropolitana. Falei do meu lugar de mundo, da minha trajetória artística e acadêmica. Fui apresentada como mulher-cis, negra, atriz, professora de Teatro, mestra em Artes Cênicas e Feminista. Bom, a fala dizia sobre todas essas categorias que desenham a minha existência. 

No momento de abertura para as perguntas, uma adolescente ‘manda pra mim’: “Como e quando você se tornou feminista?” e essa questão me pôs em xeque! Eu nunca tinha pensado em responder a isso. Eu nunca havia sido questionada sobre “como e quando”. Já precisei falar sobre as leituras que faço, sobre os livros que compro, sobre as teorias que aprendi e como eu as articulo às minhas práticas artísticas e pedagógicas. Mas não sobre “como e quando” dizendo respeito à tomada de noção, dizendo sobre procedimentos de elaboração do pensar e agir criticamente através da ótica feminista vivendo a minha vida. A pergunta foi sobre experiência! Sobre o que passa em mim e me compõe. Não sobre as leituras especializadas que me garantem o recebimento de uma “carteirinha” feminista. (Embora eu considere que processos de leitura são processos da experiência!)

Foram segundos de articulação para uma resposta que atendesse a curiosidade daquela adolescente. Eu pensava que ela pudesse estar querendo uma referência para si mesma, e eu deveria dar mais do que uma dica do que ler. Talvez fosse a chance de uma orientação sobre “ser você mesma” olhando para todos os lados e articulando pensamento e prática por justiça, igualdade, combatendo violências e mobilizando transformações.  Eu respondi que eu me percebi feminista ao encontrar em meus caminhos existências que impulsionavam os meus modos de olhar para o mundo e querer combater as opressões. Que não tinha a ver com “ser contra os homens” (achei que essa seria uma pontuação importante). E que quando me percebi mobilizada ao pensamento crítico eu não sabia denominar com a palavra “feminismo”. Sabia apenas que as minhas inquietações eram reverberações das existências que “falavam” comigo, que me afetavam desde a infância. 

Depois deste encontro eu precisei elaborar melhor sobre o “como e quando” e passei a entender que as falas que me afetavam e me impulsionavam, saíam de grandes bocas com fome de mundo. Era a boca da minha Pró Silmara, uma professora preta, alfabetizadora de crianças moradoras do Bairro Engenho Velho de Brotas, em Salvador, onde nasci e fui criada. Da boca de “Lúcia Maluca”, uma mulher negra, catadora de lixo e aparentemente idosa, acometida por problemas de saúde mental, abandonada pelo Estado. Uma sobrevivente que catava sobras e contava histórias desajustadas para quem quisesse escutar.  Lúcia parou de contar histórias e virou lenda ao morrer tragicamente ateando fogo sob um colchão velho que catara. Deitando-se nele para morrer. Foi o que contaram, outros diziam que ela tinha poderes sobrenaturais e se transformou em fogo. Também haviam bocas famintas de grito, bocas silenciadas por violências invisíveis.  Abandono, desamor próprio, medos, abusos e a fome de comida. Eram bocas confidentes de incontáveis amigas adolescentes que conversavam no corredor da escola nos constantes horários vagos por ausência de professores. Tá aí, uma ausência que muitas vezes era bem preenchida por cumplicidade e carinho entre pares, era instante de trocar dores, sorrir dos nossos segredos adolescentes e nos ajudar sem sabermos de “sororidade” nem “dororidade”.  Era e é a minha própria boca faminta de mundo, de justiça, boca “belicosa” de quem fala querendo respostas mesmo sob ameaça de interdição. 

Uma pergunta valiosa: como e quando você se tornou feminista? Me faz pensar sobre quão mobilizadora é a construção do saber pela pergunta. E como espaços de troca como a iniciativa de um curso de introdução à Cultura Afro-brasileira – ação voluntária de educadoras negras, é caminho presente nos mostrando o tempo da ação! Como e quando é sobre o que nos é legítimo, é sobre nossas vivências, nossas estratégias feministas. É (sobre)vivência!   

 

 Texto de Taiana Souza Lemos. Atriz e Professora de Teatro. Mestra em Artes Cênicas.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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