Notas para uma nova geração de políticas antirracistas

Entre 2003 e 2016, o Brasil conheceu sua primeira geração de políticas públicas dedicadas a promover a igualdade racial e combater o racismo. Ao longo desses anos, o dinamismo econômico, a expansão das políticas sociais e a criação de oportunidades específicas para a população negra permitiram a melhoria das condições de vida de nossa população. Com a crise econômica iniciada em 2014, parte das conquistas foi revertida. Com o novo ciclo político, novos desafios foram colocados. O presente texto se coloca como um conjunto de notas – de ideias que já transitam entre os movimentos negros, acadêmicos e servidores públicos – sobre quais princípios podem orientar a renovação das políticas públicas que têm impacto direto na garantia de direitos para a população negra. Aqui, o ponto de vista é de quem já participou de sua execução na esfera federal de governo, entrevendo a possibilidade de mudança na correlação de forças que permita a emergência de um governo de centro e então, de uma renovação possível na Esplanada dos Ministérios. 

Antes de tudo

Somos maioria demográfica: mais de 117 milhões de pessoas, ou cerca de 56% da população brasileira. A maior parte é mulher: aproximadamente 60 milhões, ou 29% do total de habitantes do país. No campo liberal-progressista, ganhamos a batalha sobre a narrativa do caráter estrutural do racismo na estruturação da sociedade brasileira. O risco é que ao invés de um conceito político-transformador, ele seja tomado como um dado da realidade, meramente descritivo. Por isso, é preciso comprometer as lideranças não-negras com nossa agenda: não há projeto nacional que se pretenda democrático e inclusivo nesse país sem considerar a herança da escravização, as condições concretas de nossa existência nem a beleza de nossos sonhos. Como sempre nos pontua Valdecir Nascimento, enfrentar as desigualdades raciais significa expandir humanidades e, portanto, reforçar o caráter republicano do Estado Brasileiro.

Nesse sentido, cabe recuperar uma lição que o Movimento de Mulheres Negras nos deu nos anos 1990/2000: a articulação internacional é uma estratégia importante para engendrar mudanças internas. A atuação das mulheres negras nas conferências das Nações Unidas destas décadas comprometeu o Governo Federal com planos de ação firmados juntos à comunidade nacional e internacional (Carneiro, 2011)². Não é demasiado lembrar, Durban (2001) catalisou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2003-2015). 

Isso posto, na esteira dos protestos pelo assassinato de George Floyd por forças policiais nos Estados Unidos, variadas organizações multilaterais e internacionais com incidência no setor público e privado têm renovado suas agendas buscando consolidar políticas antirracistas. Assim, entende-se que alianças estratégicas com estas organizações e/ou o uso de recomendações delas junto ao Governo Brasileiro podem ser úteis mesmo no contexto atual³. Nos próximos dois anos, podem servir como pressão institucional adicional à formulação de agendas políticas dos postulantes à presidência.   

Princípios

A agenda da igualdade racial arrefeceu desde o impeachment de Dilma Rousseff. O conjunto de experiências acumuladas na existência da Seppir, mais as novas necessidades da população expostas pela virtual eliminação da política de igualdade racial, pela crise econômica e pela pandemia, já permitem um desenho preliminar do que se pode fazer diferente. Nos parágrafos seguintes, elenca-se uma síntese sobre quais podem ser seus princípios.

I. Defesa irrestrita do direito à vida: as taxas de homicídio contra pessoas negras seguem crescendo no Brasil, ao contrário do que acontece com outros grupos sociais. Em 2018, para citar o exemplo mais recente, negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 37,8. Entre não negros a taxa foi de 13,9. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras. Entre LGBTTQI+, os dados ainda precisam melhorar, mas estima-se que sejamos maioria entre mortos (IPEA, 2020⁴).  Não haverá paz na comunidade negra enquanto um(a) Presidente(a) da República não se comprometer com uma solução que garanta a vida de nossa gente. Avaliações realizadas por pesquisadores em todo o país já oferecem um cardápio de soluções institucionais e proposições legais endereçando a questão – a partir de críticas à militarização das políticas, guerra às drogas, encarceramento em massa, criminalização das expressões artísticas da juventude periférica, etc. A questão fundamental é o quanto a coalizão hoje no poder, fortemente amparada por grupos sociais de caráter fundamentalista-conservador, permanecerá como uma força política capaz de interditar esse conjunto de propostas nos próximos anos.

II. Racialização das políticas sociais universais: os movimentos negros conquistaram a Política Nacional de Saúde da População Negra e a lei nº 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas. Explicitaram, assim, que o Sistema Único de Saúde (SUS) e as escolas devem ser espaços de valorização da vida de pessoas negras e não de seu sofrimento. Pesquisas realizadas nestes grandes serviços de política pública informam, todavia, a persistência do racismo na sua prestação, ora expresso nos indicadores de saúde com recorte racial, ora expresso nos indicadores do Censo Escolar, por exemplo. Assim, é preciso um esforço renovado de intervenção sobre essas políticas sob coordenação da esfera federal de governo, amparado nas experiências subnacionais exitosas de combate ao racismo institucional e em metas explícitas de transformação de realidades, como por exemplo, a redução da mortalidade materna de mulheres negras⁵  ou a redução da evasão escolar de jovens negros⁶. Quanto à assistência social, em particular, é preciso assumir de uma vez por todas que os benefícios assistenciais (Benefício de Prestação Continuada e Programa Bolsa Família) e serviços associados (prestados pelo Sistema Único de Assistência Social) existentes – e os que poderão vir, como a Renda Básica de Cidadania – são sobretudo dirigidos à pessoas e famílias negras e que é imprescindível levar isso em consideração no seu aperfeiçoamento. Finalmente, é preciso reverter a tendência de queda real no gasto das políticas sociais, provocada pelo advento da Emenda Constitucional nº 95/2016⁷ (Governo Michel Temer), que congela o gasto das despesas primárias do Poder Executivo (Orçamento Fiscal e da Seguridade Social) por 20 anos em valores de 2016. 

III. Desambiguação das políticas de ação afirmativa: a imprensa tem colecionado reportagens de pessoas beneficiárias de ações afirmativas destinadas para pessoas negras ocupadas por pessoas brancas. Basicamente, porque aproveitando-se da ambiguidade do desenho ou da implementação das políticas, afirmam-se como afrodescendentes, ignorando que o racismo brasileiro é baseado no fenótipo (Cf. SILVA, 2019⁸). Assim, é preciso fazer uma investida em capacitação nos processos de heteroidentificação existentes nas universidades e nas bancas de concursos públicos, visando diminuir os erros de inclusão das políticas; e na produção de dados sobre os beneficiários, buscando demonstrar os avanços e barreiras ainda existentes. No fundo, trata-se de fornecer uma base conceitual e operativa consistente para as políticas de promoção da igualdade racial que reduza suas chances de contestação e retire de sua cena os privilegiados de sempre. Pondere-se que políticas de ação afirmativa têm papel relevante na formação de uma classe média negra brasileira ampla, ao abrir caminhos para que seus beneficiários acessem melhores posições no mercado de trabalho.

IV. Desenvolvimento dos territórios quilombolas e combate à pobreza rural: avançar na titulação de territórios quilombolas, na reforma agrária e em políticas integradas de desenvolvimento como um passo fundamental para a garantia de direitos, de combate à pobreza e de preservação dos biomas brasileiros. Com o avanço da fronteira agrícola e extrativa-mineral, o modo de vida das populações quilombolas têm sido cada vez mais entendido como uma barreira objetiva ao desenvolvimento econômico. Não só a titulação de terras não avança; na pandemia, foram deixados à própria sorte. É preciso reverter esse quadro de abandono recentemente aprofundado, revendo as lições aprendidas e os limites encontrados pelo Programa Brasil Quilombola, pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário e pelas políticas de segurança alimentar e nutricional do antigo Ministério do Desenvolvimento Social.

V. Desenvolvimento de tecnologias governamentais para nossas comunidades: as transferências voluntárias supervisionadas por servidores públicos foram por muito tempo os principais mecanismos de transferências de recursos públicos usados pelas secretarias de igualdade racial, mulheres e direitos humanos para financiarem as organizações sociais mais estruturadas de nossas comunidades. Sem estrutura de orçamento e finanças um lado e sem expertise de outro, muitas foram penalizados pelos órgãos de controle. Ao mesmo tempo em que são ferramentas burocráticas para a produção de resultados, possuem controles inadequados de execução, pouco ajustados para as realidades que pretendem transformar. É preciso fazer de outro jeito, potencializando as ferramentas e necessidades da base, não do topo da hierarquia governamental. Primeiro, ouvir os terreiros, as favelas, os ribeirinhos, etc. Depois, testar projetos pilotos. E finalmente, expandir.

VI. Formulação de políticas ativas de mercado de trabalho: segundo dados anualizados da PNAD 2019, cerca de metade das mulheres negras está fora do mercado de trabalho. Quando entram, a maioria ganha até dois salários mínimos, principalmente no trabalho doméstico. Isso, apesar de serem na média mais escolarizadas que os homens negros. Combinado ao Teto de Gastos, isso coloca as mulheres na condição de principais responsáveis pela proteção social de suas famílias. É preciso consolidar um conjunto de políticas públicas voltadas para a inserção qualificada da mulher negra, tendo em conta o aprofundamento das desigualdades na pandemia do novo coronavírus, sob pena de termos um grande contingente em idade ativa pelos próximos anos sem nenhuma ocupação remunerada, aprofundando sua vulnerabilidade social e das suas famílias.

VII. Superação do caráter residual das políticas de promoção da igualdade racial: estrutura organizacional frágil; orçamento diminuto sujeito a cortes; corpo técnico reduzido e com vínculos precários; baixa capacidade de planejamento e gasto; fragilidade de controles internos, com respectiva penalização de organizações sociais conveniadas; baixa capacidade de articulação interministerial, portanto, de incidência no desenho de políticas sociais e econômicas; baixa capacidade de articulação interfederativa; secundarização de pautas na agenda governamental, etc.  – tudo isso esteve presente na realidade da Seppir. Qualquer novo intento de políticas de promoção da igualdade racial deve enfrentar essas questões como ponto de partida, seja qual for o seu formato institucional (Secretaria Especial ou Ministério), sob pena das agendas anteriores naufragarem no começo.

 

Nenhuma novidade foi escrita nos itens acima. São reflexões correntes na sociedade civil⁹, e entre acadêmicos e servidores públicos que participaram da execução das políticas de igualdade racial. Mas vale o registro sintético, para que relembremos a necessidade de um plano de operação certeiro, para colocarmos em marcha quando as condições políticas para quais estamos lutando se materializarem. 

¹ United Nations Human Rights Fellow of African Descent (2020). Agraciada pelo Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras (2019). Mestre em Desenvolvimento Econômico, com concentração em Economia Social e do Trabalho (Unicamp, 2011), Especialista em Planejamento e Orçamento (Enap, 2020) e Graduada em Administração (UFBA, 2007). Atuou por 4 anos (2013-2017) na implementação do Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR). Hoje é servidora da carreira de planejamento e orçamento federal.
³ Por exemplo, utilizando o processo de adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a agenda do Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum) ou ainda, a Agenda 2030 das Nações Unidas. É verdade que há um distanciamento do multilateralismo pelo Governo atual, mas ainda assim ela é uma esfera importante para engendrar mudanças internas por conta dos variados interesses econômicos e sociais que afetam. Quanto às ONGs, o discurso é de criminalização, mas cada vez mais portas têm se aberto para o tratamento da questão racial, ampliando oportunidades para organizações, coletivos e indivíduos que jamais haviam se colocado em décadas anteriores.

⁵  No Brasil, a razão de mortalidade materna é de 59,1 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, número considerado elevado para padrões internacionais. As mulheres negras representaram 65% dos óbitos em 2018. 92% das mortes ocorridas são consideradas evitáveis, porque se relacionam com intervenções, omissões, tratamento incorreto ou uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas. Nesse sentido, representam uma grave violação de direitos humanos (MS, 2020).

⁶Conforme números da PNAD Educação 2019, das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% (ou 10,1 milhões) não completaram alguma das etapas da educação básica, seja por terem abandonado a escola, seja por nunca a terem frequentado. Desse total, 71,7% eram pretos ou pardos (IBGE, 2020).

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm

https://repositorio.unb.br/handle/10482/35766

⁹ Carta Proposta da Coalizão Negra Por Direitos: https://coalizaonegrapordireitos.org.br/sobre/ 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

 

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