Em setembro deste ano celebraremos os dez anos de aprovação da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento que após vinte anos de negociações veio com o intuito de proteger mais de 370 milhões de indígenas no mundo, reforçando uma luta pela autodeterminação, subsistência e uso de terras. E o que o Brasil tem a ver com isso?
Por Adriane Secco, do Justificando
O país foi construído passando por cima dos diversos ideais de sociedades e de culturas que aqui habitavam. Os indígenas foram forçosamente incorporados ao modelo de Estado brasileiro. Tanto é que o instituto de Marco Temporal de uso das terras deve ser desconsiderado plenamente, de forma a proteger e delimitar os territórios tradicionalmente ocupados. Essa tese tem sido usada pela 2ª Turma do STF e pela PEC 215/200 que entendem que a data da promulgação da Constituição Federal seria um limite para constituição desse direito, violando até a própria CF, no artigo 231 e o que dispunha as Constituições brasileiras anteriores desde 1934.
No famoso caso de julgamento da reserva Raposa Serra do Sol, o Supremo elaborou uma lista de considerações para posse das terras tradicionalmente ocupadas, o que nos leva a entender que as noções de posse e propriedade foram arbitrariamente conceituadas e concedidas. A tese do marco temporal também foi considerada nesse caso e acabou abrindo precedentes para outros julgamentos, como as terras de Limão Verde, Guyraroká e Buriti, todas no Mato Grosso do Sul.
No caso da barragem de Belo Monte o cenário não foi diferente. Não houve consulta ou audiência pública para participação e consideração de indígenas como sujeitos de direitos, violando principalmente os artigos 27 e 32 da Declaração que dispõem sobre a participação ativa dos índios em qualquer processo judicial relacionado a suas terras, e preceitos da Convenção 169 da OIT.
Recente caso também em São Paulo em que o Ministério da Justiça anulou a reserva indígena do Jaraguá, onde vivem cerca de 700 pessoas em condições precárias. O argumento utilizado pelo MJ foi de “erro administrativo” pela falta de participação do Estado na definição conjunta das formas de uso da terra.
O governo federal está em vias de negociar ameaças a Reserva Nacional de Cobre e Associados, uma área na Amazônia de aproximadamente 47 mil quilômetros de área verde para dar lugar à exploração de minerais pela iniciativa privada. As etnias afetadas serão os Aparai e os Wayana, do lado paraense, e no lado do Amapá, o povo Wajãpi.
Nesses casos citados, podemos dizer ainda que houve violação dos artigos 9, 10 e 11 da Declaração que dispõem sobre o direito de permanência dos indígenas em seus territórios e que nenhum deslocamento será realizado sem o consentimento e sem acordo prévio sobre indenização. Além dos artigos 18, 19 e 20 que versam sobre as tomadas de decisões internas de cada povo indígena e o direito de participação em decisões do Estado que lhes interessem.
Rejeição
Infelizmente esta Declaração da ONU e demais tratados assinados pelo Brasil foram rejeitados e outras vezes desconhecidos pelo Poder Público. Em nota emitida pela OIT, os povos indígenas constituem 15% dos pobres do mundo, além de atingirem menores expectativas de vida e piores resultados no acesso a educação.
As mulheres indígenas são frequentemente as mais pobres, discriminadas pela origem e pelo gênero.
Especialistas da ONU alertam sobre a falta de participação na política e reconhecimento oficial de jovens e mulheres indígenas. A ONU também informa que a perseguição e assassinatos a defensores da causa indígena mais que dobrou de 2014 para cá, sendo cerca de 281 assassinados em 25 países.
A própria FUNAI entende até hoje que os indígenas devam assim ser considerados mediante critérios externos (p. ex. por atestados de uma comunidade e visão de não-índios), sendo uma hétero identificação, e não pela autodeterminação dos povos como consta na Declaração da ONU e Convenção 169 da OIT.
Em junho deste ano, a ministra Carmen Lúcia recebeu uma delegação de jovens, mulheres e crianças da etnia Guarani-Kaiowá que manifestaram repúdio a PEC 215/2000, além de relatarem casos de fome, insegurança alimentar, violência, racismo. A ONU Brasil também recebeu em agosto uma delegação de mulheres guaranis-kaiowá que buscava apoio e denunciava diversas formas de violências, inclusive o feminicídio.
Dentre as recentes recomendações dos países membros da ONU ao Brasil, os povos indígenas foram mencionados como forma de alerta para proteção dos direitos – seja explicitamente expresso como sujeitos de direitos, seja abrangendo-os indiretamente como vulneráveis em grupos minoritários.
A Nova Lei de Migração recentemente sancionada por Michel Temer, considerava em seu projeto inicial os indígenas como povos migrantes e em condições de vulnerabilidade, o que facilitaria e reforçaria a defesa dessas pessoas. No entanto essa parte foi vetada pelo presidente. Esse veto retirou da lei o reconhecimento do direito à livre circulação dos povos indígenas em suas terras originárias, levando a ampliação da criminalização dessa migração.
Importante ressaltar que esta Declaração não precisa se tornar lei nem ser ratificada pelo Congresso Nacional, pois o Brasil já se mostrou favorável a este documento na Assembléia Geral da ONU. A Bolívia, por exemplo, optou por adotar a Declaração na sua integralidade como lei doméstica, em novembro de 2007. O Brasil também pode aprovar leis que abordem os direitos indígenas e a relação dos indígenas com o Estado – como, por exemplo, o Estatuto dos Povos Indígenas (PL 2057/91), observando os parâmetros estabelecidos na Declaração com os quais se comprometeu.
Apesar da falta de vontade política e jurídica no assunto por parte dos Estados, é possível celebrar os 10 anos desta Declaração pela participação ativa de indígenas na elaboração do texto e na luta pela prática do mesmo.
Além disso, é importante ressaltar e observar a união cada vez maior de etnias indígenas em torno de um ideal único de reconhecimento enquanto povos independentes e reivindicação por proteção de seus direitos e suas terras. Interessante verificar também que muitos deles se organizam independente de instituições governamentais e privadas (como ONGs).
Mulheres indígenas também merecem destaque pelo papel representativo que estão exercendo ultimamente. Elas estão se unindo cada vez mais, organizando grupos e lideranças a fim de enfrentar inclusive a discriminação por gênero e origem, além buscar apoio até de instâncias internacionais para superar dificuldades.
As redes sociais também auxiliam bastante na promoção de ideais, troca de informações e contato entre povos. Diante desses desafios e conquistas, fica a pergunta: o que impede o Poder Público e sociedade de mudar esse cenário?
Adriane Secco é advogada especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP. Atua com direitos humanos, especificamente com imigração desde 2013, passando por diversas ONGs, centros acadêmicos, e órgãos governamentais, como a Defensoria Pública da União e juizados especiais.