Como falar com seus filhos sobre abuso sexual

A orientação dos especialistas para tratar de um tema difícil como o abuso sexual, com crianças de todas as idades.

Por  Caroline Bologna, do HuffPost

Uma criança sozinha olhando para o horizonte (Foto: @ ARTSY SOLOMON)
A abordagem incentiva os pais a ensinar as crianças a reconhecer comportamentos dignos de confiança. (Foto: @ ARTSY SOLOMON)

Em janeiro de 2018, o mundo assistiu os depoimentos nauseantes de 169 mulheres e parentes cujas vidas foram afetadas pelos crimes sexuais de Larry Nassar, ex-médico da seleção de ginástica olímpica da seleção americana e da Universidade de Michigan.

Histórias como a de Nassar reforçam o desejo de pais e responsáveis de proteger as crianças de um horror que infelizmente é mais comum que se imagina.

Pode ser difícil pensar no abuso sexual de crianças, mas é preciso falar do tema com crianças de todas as idades. Felizmente, há maneiras adequadas para tratar do assunto de acordo com a idade, estabelecendo as fundações e conceitos que vão manter as crianças seguras e empoderá-las para falar se algum limite for ultrapassado.

O HuffPost US conversou com educadores especializados em sexualidade para saber qual é a melhor maneira de conversar com as crianças sobre abuso e como reconhecer e responder a situações problemáticas.

Desde cedo, comece a estabelecer autonomia sobre o corpo, privacidade e mais

Os pais podem estabelecer uma fundação de segurança desde a mais tenra idade da criança, diz Melissa Carnagey (http://sexpositivefamilies.com/). Os termos corretos para a genitália, em vez de nomes fofinhos, empoderam as crianças a falar claramente sobre elas mesmas e sobre seus corpos.

 

“Fazendo isso, os pais criam uma cultura doméstica aberta e livre de vergonha no que diz respeito ao corpo”, diz Carnagey ao HuffPost, em entrevista por email. “Quando a criança está na idade da pré-escola, os pais podem ajudá-la a entender os limites do corpo e o consentimento, prestando atenção quando ela diz ‘não’ ou ‘pare’ e reforçando a importância de também respeitar os limites do outro.”

 

“Conversas preventivas sobre abuso sexual em geral não são específicas”, diz a professora de educação sexual Kim Cavill (https://www.teaandintimacy.com/). Ela incentiva os pais a ensinar os nomes corretos para as partes do corpo, além de falar de autonomia sobre o próprio corpo, privacidade, privacidade ambiental, como dizer “não” e a diferença entre segredos e surpresas.

 

“Autonomia sobre o corpo significa reconhecer que cada um é dono do seus próprio corpo e tem o poder de decidir o que fazer com ele, desde que não signifique machucar outra pessoa ou a si mesmo”, diz Cavill ao HuffPost, por email. “Privacidade sobre o corpo significa ensinar às crianças que algumas partes do corpo são privadas, e outras pessoas não deveriam olhá-las ou tocá-las. Os médicos deveriam pedir permissão para examinar essas partes, e os pais ou um responsável devem estar presentes.”

“Privacidade ambiental” significa ensinar às crianças as regras sociais e as expectativas em situações como vestiários, banheiros públicos e assim por diante.

Ensinar as crianças a dizer “não” também é muito importante.

“As crianças nem sempre acham que é OK dizer ‘não’, especialmente para adultos, porque elas aprendem a ser obedientes”, diz Cavill. “Temos de ensinar às crianças explicitamente como estabelecer limites e apoiá-las quando elas o fazem, mesmo que isso gere situações desconfortáveis, como se recusar a dar abraços em parentes e amigos.”

Converse sobre sentimentos

“Quando as crianças sabem o nome das emoções que sentem e são capazes de reconhecer as respostas emocionais dos outros, elas aprendem a expressar suas necessidades, a ter empatia e a ouvir os sinais do corpo, especialmente em situações em que estão pouco à vontade”, diz Carnagey.

“Temos de falar de sensações boas e ruins nas conversas diárias”, diz a educadora sexual Lydia Bowers. “‘Gosto quando você me abraça, fico quentinha’ e ‘não gostei quando ele pegou minha boneca, fiquei brava’. Esse tipo de frase dá às crianças a linguagem para descrever seus sentimentos, o que pode ser crucial para reconhecer quando elas se sentem inseguras, com medo ou preocupadas.”

Quando as crianças sabem o nome das emoções que sentem e são capazes de reconhecer as respostas emocionais dos outros, elas aprendem a expressar suas necessidades, a ter empatia e a ouvir os sinais do corpo, especialmente em situações em que estão pouco à vontade.Melissa Carnagey, educadora sexual

É importante ajudar as crianças a praticar a identificação de sentimentos como medo, ansiedade, confusão, tristeza e desconforto. Os adultos não devem desprezar ou fazer pouco caso dessas emoções caso elas sejam expressadas pelos filhos.

Os pais também podem ensinar os sinais emitidos pelo corpo em relação aos sentimentos e que merecem atenção (como suor nas mãos, vontade de chorar ou a necessidade repentina de urinar).

Explique ‘toques desconfortáveis’

Educadores sexuais em geral consideram os termos “toque seguro” e “toque perigoso” melhor que “toque bom” e “toque ruim”. Pode ser fácil classificar os toques nas partes privadas como um exemplo de “toque ruim”, mas às vezes existem respostas fisiológicas que podem parecer boas, o que pode causar confusão.

“Toque perigoso” também compreende certas formas de contato que podem ser “boas” em outros contextos. “Um abraço é um toque ‘bom’, mas se for de alguém que não deveria te abraçar, pode ser ‘perigoso’”, diz Bowers.

“As pessoas também podem parecer ‘boas’, mas fazer escolhas perigosas”, afirma Carnagey. “Então é melhor usar termos como ‘seguro’ e ‘perigoso’ e basear as conversar com as crianças no reconhecimento das situações potencialmente perigosas.”

Não se concentre apenas no perigo dos ‘estranhos’

“As crianças sempre aprenderam a ter cuidado com estranhos, mas o caso Nassar é um bom exemplo do problema dessa ideia”, diz Carnagey. “Os abusadores muitas vezes são conhecidos das crianças ou já tiveram contato prévio com elas, então temos de falar em termos de ‘pessoas complicadas’, termo cunhado por Pattie Fitzgerald (http://safelyeverafter.com/tips.html).”

Essa abordagem incentiva os pais a ensinar as crianças a reconhecer comportamentos dignos de confiança.

“As pessoas confiáveis sempre falam a verdade, respeitam a privacidade, não pedem que as crianças guardem segredos, pedem ajuda para adultos (e não para crianças), transmitem sensação de segurança, respeitam as regras da família e lembram as crianças de pedir a permissão dos pais”, diz Cavill. Ela gravou um episódio de podcast (https://soundcloud.com/user-233677690/trustworthy-grown-ups-level) e uma lista (https://docs.google.com/drawings/d/1y3LuzE7SwB-D0ikvqrs7uMSjeHJkfinTq-gBfbGOlgY/edit) para ajudar os pais a conversar sobre confiança. “Pessoas complicadas não fazem esse tipo de coisa, ou então fazem o contrário.”

Deixe claro que elas sempre podem te procurar

É essencial que os pais sempre deixem abertas as “portas da conversa”, afirma Cavill. “As crianças vão usar essa porta para falar com você, mas só se ela estiver sempre aberta.” Os pais podem criar esse tipo de ambiente sendo receptivos a perguntas e conversas sobre sexo e relacionamentos.

É claro que falar é uma coisa, fazer, outra. A frase “você pode contar tudo para mim” perde o significado se os pais respondem perguntas sinceras com punição, reações agressivas ou exageradas e fazendo pouco caso. Os pais têm de estar cientes de suas respostas verbais ou não verbais, mesmo que a conversa seja difícil – ou que as crianças fiquem pouco à vontade para falar porque estão com medo da reação dos adultos.

A frase “você pode contar tudo para mim” perde o significado se os pais respondem perguntas sinceras com punição, reações agressivas ou exageradas e fazendo pouco caso.

“Se a criança relata um caso de abuso, é importante lembrar-se de manter o foco nela, não no abusador ou na sua reação”, diz Cavill. “Pode ser difícil, mas é importante, porque reagir com raiva, vergonha ou negação a esse tipo de revelação pode atingir a confiança da criança e impedir conversas futuras. Uma criança vulnerável pode ficar ainda mais vulnerável.”

“A primeira vez que fui molestada, tinha 9 anos. Falei do abuso, mas só encontrei negação e tentativas de acobertamento”, continua ela. “Quando fui novamente vítima de abuso, nem me dei o trabalho de contar, porque estava condicionada a esperar que o abusador fosse protegido, e eu, não. Isso gerou a sensação de que, no fundo, eu mereci aquilo.”

Identifique adultos de confiança

Conforme as crianças vão crescendo, os adultos devem ajudá-las a identificar os adultos de confiança em suas vidas, como parentes e professores.

“Em vez de chamá-los de ‘adultos de confiança’, pergunte: ‘Em que você acha que confiaria se precisasse de ajuda?’ ou ‘Com quem você ficaria à vontade para conversar se estivesse com algum problema e precisasse de ajuda?’”, afirma Carnagey.

“É importante que haja mais de uma pessoa, para que a ajuda esteja disponível na hora de necessidade”, diz ela. Abusadores às vezes são considerados pessoas de confiança (como era o caso de Nassar para muitas famílias.

Identificar vários adultos de confiança também ajuda os pais. Assim como os filhos precisam saber que podem falar a verdade sem medo de punição, os pais têm de retribuir a sinceridade. Isso significa admitir vulnerabilidades, erros e o fato de que eles não têm a resposta para tudo e às vezes precisam de ajuda.

Deixe claro que nunca é culpa das crianças

As crianças precisam saber que não são responsáveis pelos adultos à sua volta, incluindo seus pais.

“Como elas dependem tanto dos adultos, podem sentir-se responsáveis pelos sentimentos e comportamentos dos adultos que as cercam, especialmente aqueles em posição de autoridade ou as pessoas de quem gostam”, afirma Cavill. “Infelizmente, a maioria dos casos de abuso de crianças acontecem no contexto de relações próximas ou familiares. O movimento #MeToo indica como é comum que pessoas em posição de autoridade tiram proveito daquelas sobre as quais têm poder.”

Cavill diz para seus filhos que eles são responsáveis por si mesmos, não pelas outras pessoas: “Os sentimentos da mamãe são da mamãe. Você não tem de se preocupar, eles são de minha responsabilidade”.

Os sentimentos da mamãe são da mamãe. Você não tem de se preocupar, eles são de minha responsabilidade.Kim Cavill, professora de educação sexual.

Os pais podem reforçar essas mensagens conforme os filhos vão crescendo, dando exemplos de relacionamentos saudáveis e conversando sobre as expectativas da família e relação aos relacionamentos românticos. O site Talk With Your Kids (converse com seus filhos) oferece guias para esse tipo de conversa.

Assim como é importante que a criança saiba que não tem culpa se for tocada, é essencial ensinar noções como limite e consentimento.

Não é “incomum que crianças pequenas experimentem tocar, e isso pode ser inadequado para outras crianças da mesma idade”, diz Carnagey. “Mesmo que isso aconteça, uma criança que se sinta segura para conversar sobre isso sem medo de punição é essencial para que esse tipo de comportamento não aconteça de novo no futuro.”

Preste atenção aos sinais

Os pais conhecem os comportamentos típicos dos seus filhos e podem prestar atenção a eventuais sinais de problemas.

“Quero deixar muito claro que não há um limiar mínimo para procurar a ajuda de um terapeuta. Se estiver na dúvida, procure”, diz Cavill. “Dito isso, existem alguns sinais de alerta: conhecimentos ou comportamentos sexuais impróprios para a idade da criança, xixi na cama, resistência a trocar de roupa ou ficar nu, medo repentino de ficar sozinho ou longe dos pais e aumento da ansiedade.”

A Rape, Abuse & Incest National Network, organização não-governamental que lida com casos de abuso sexualpublica uma lista de sinais que ajudam a determinar se um adulto está molestando uma criança. Os sinais que podem indicar abuso sexual podem ser físicos (hematomas, sangramento ou irritações na área genital, por exemplo), comportamentais (tais como falar de atos sexuais, como nota Cavill, ou uma timidez repentina na hora de tirar a roupa) ou emocionais (como ansiedade, pesadelos ou medo de ficar sozinho).

Conforme as crianças vão crescendo, elas têm mais interações com outras pessoas sem a presença dos pais – na escola ou brincando com amigos, por exemplo. Carnagey recomenda tirar um tempo todos os dias para checar as crianças, para que eles estejam conectados com os sentimentos e experiências dos filhos.

“Isso é ótimo para notar mudanças sutis ou abruptas no humor ou no comportamento e que possam ser resultado de experiências perigosas”, diz ela. “Manter um espaço aberto e livre de censuras, qualquer que seja o tema da conversa, pode aumentar as chances de a criança falar sobre eventuais problemas.”

Saiba como agir em caso de problemas

Se a criança relatar um “toque perigoso”, é essencial dizer que você acredita nela, que elas estão certas em procurá-lo e que o incidente não foi culpa dela. Responder com amor, compaixão e aceitação é muito importante.

“As crianças muitas vezes acham que são responsáveis pelo abuso, e os agressores às vezes culpam as crianças”, diz Bowers. “Tranquilize-a, dizendo que ela não tem culpa, que são amadas e estão seguras.”

Se a criança relatar um “toque perigoso”, é essencial dizer que você acredita nela, que elas estão certas em procurá-lo e que o incidente não foi culpa dela.

“A comunicação sincera é importante para manter a confiança e a abertura depois de uma revelação. Isso pode significar explicar para a criança que você tem de compartilhar a informação com outros adultos cuja responsabilidade é zelar pela segurança delas, como médicos, policiais, conselheiros e assim por diante”, diz Carnagey. “Manter os ouvidos abertos, sem reações extremas ou julgamentos, vai ajudar a criança se sentir à vontade para relatar o que houve.”

Carnagey também recomenda que os pais ou responsáveis procurem ajuda para si mesmos, pois esse tipo de revelação traz à tona emoções difíceis e eventualmente traumas passados. Pais ou responsáveis podem ter a tendência a se retrair e se isolar, tomados por sentimentos de vergonha ou fracasso.

“Os pais precisam se lembrar de que a ação de outra pessoa foi decisão daquela pessoa. Não é culpa dos pais”, diz Carnagey. “Uma criança que passa por algo assim não está ‘estragada’. Com ajuda, a criança e os pais podem levar uma vida próspera.”

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