Como falar sobre raça e privilégio com o meu filho negro

Esta experiência foi uma das muitas lições que meu filho teve que aprender desde cedo sobre o conceito de privilégio

Por Rochaun Meadows-Fernandez, HuffPost US, no HuffPost Brasil 

Foto: BEINGBONNY VIA GETTY IMAGES

“Vamos sair, filhote, vamos à loja.”

Meu filho e eu íamos ao Walmart com uma amiga de família mais velha, com a missão de comprar um cartão de memória para o laptop dela. Eu gostava de sair com ela, e acompanhá-la à loja para ajudar com questões de tecnologia seria uma boa ação. Mas eu não tinha previsto que essa ação tão corriqueira se transformaria em uma das muitas lições que meu filho teve que aprender desde pequeno sobre o conceito de privilégio.

“Rino”, ele gemeu, agarrando o Rinoceronte, seu bichinho de pelúcia favorito.

“Sinto muito, filhote, não podemos levar Rino à loja”, eu respondi, relutante.

Ele não gostou da resposta e soltou um grito de partir o coração. “Por que não?”, implorou, soluçando.

Tínhamos caído de cheio no meio de uma lição difícil que muitas crianças negras são obrigadas a aprender desde muito pequenas. Por ser um garoto negro, meu filho não tem a liberdade de levar seus brinquedos quando vamos para lojas.

Se levássemos seus brinquedos, na melhor das hipóteses os funcionários nos olhariam desconfiados, querendo saber por que Rino não estava numa sacola com recibo, como os outros objetos comprados. Na pior, eles nos pediriam para mostrar um recibo, para comprovar que tínhamos trazido Rino de casa. Nenhuma dessas alternativas é ideal para uma mãe negra jovem com uma missão a cumprir. Mas as duas são coisas que podem acontecer, e eu preciso ir explicando isso ao meu filho aos poucos. Além, é claro, das preocupações normais dos pais com filhos pequenos.

Meu filho tem 2 anos. Nessa idade deveríamos estar trabalhando a comunicação com ele, o alfabeto, os números, ensinando-o a identificar formas e cores.

Mas o currículo é diferente para as crianças não brancas, especialmente as crianças como meu filho, que no futuro será um homem negro. Sim, ele terá que aprender essas cores, esses números e essas formas. Mas também terá que aprender um conjunto diferente de limitações e expectativas sociais.

Aquela experiência foi uma das muitas primeiras lições que meu filho pequeno precisou aprender sobre o conceito do privilégio. No caso, o privilégio é aquele que possibilita a todas as criancinhas brancas que ele viu no Walmart levarem seus bichos de pelúcia à loja. O privilégio é também o que autoriza os pais dessas crianças brancas a encarar as ações de seus filhos como simplesmente “coisas de criança”. E há outro privilégio: se uma dessas crianças derramar ou quebrar alguma coisa, é muito provável que lhe deem o benefício da dúvida.

Mas para nós as coisas sempre serão diferentes.

“Sinto muito, meu filho. Sei que você é pequeno e não tem como entender isso agora. Mas você é um garoto negro”, eu lhe disse, enquanto ele me encarava com os olhos cheios de lágrimas. “Isso quer dizer que haverá muitos momentos em sua vida em que as pessoas vão automaticamente supor o pior em relação a você. Não por causa de alguma coisa que você tenha feito. Mas por causa das ideias falsas que elas têm sobre quem você é.”

“Ainda bem que você está ensinando isso para ele desde cedo”, disse nossa amiga da família. Aquele papo que tivemos não foi algo fora do comum. Foi um capítulo fundamental no manual de educação dos filhos de pais negros.

Outros capítulos já incluíram aulas sobre coisas pequenas, como o fato de os bonés não serem feitos para dar espaço aos nossos penteados afro ou que os protetores solares deixam um resíduo branco porque não são pensados para pessoas de pele escura.

Essas lições podem parecer tolice para alguém que nunca tenha sentido na pele como ser negro na América implica ser visto como o outro. Mas elas são necessárias para nós.

Há um capítulo no manual para os pais que me deixa especialmente nervosa, se bem que ainda não tenhamos chegado a ele: como lidar com a polícia. Estou pensando em como, de modo apropriado mas prudente, mostrar a meu filho a importância da polícia, mas ao mesmo tempo ter consciência de como ele pode ser visto por ela dentro de alguns anos. Muitas pessoas de minha cidade foram criadas para encarar a polícia com desconfiança (justificada). Mas quero que ele entenda a utilidade da polícia e também que sinta o menor medo possível.

Agora, voltando àquele rinoceronte de pelúcia: enquanto meu filhinho chorava por não ter Rino nos braços, eu tinha vontade de chorar com ele. Não é justo que tenhamos que começar com essas conversas quando ele ainda é tão pequeno. Me dói ter que negar alguma coisa ao meu filho em função do racismo e do preconceito implícito. Mas a possibilidade de chamar ainda mais atenção a nós em uma área rural de população quase exclusivamente branca me deixava ansiosa demais.

Sou uma mulher negra. E, como meu filho, é pouco provável que me dessem o benefício da dúvida. Enquanto meu filho chorava no carrinho de compras do Walmart, eu tentava acalmá-lo e ao mesmo tempo ignorar os olhares de reprovação de pessoas que obviamente estavam questionando o modo como eu cuido dele.

Os fracassos e dificuldades de pessoas em nossa comunidade sempre são atribuídos às mulheres negras. Muito frequentemente todo problema que aparece na comunidade é vinculado a alguma falha das mães negras. E já fui testemunha em vários momentos do privilégio da maternidade nos sendo retirado.

Esses pensamentos estão presentes em minha cabeça a todo momento. Mas, diferentemente de minha avó, faço questão de reforçar para meu filho que as percepções racistas são culpa dos outros, não dele.

“Você não deve nada àquelas pessoas que nos estão julgando”, digo a ele, ao mesmo tempo que me sinto uma hipócrita por não deixá-lo levar seu bicho de pelúcia à loja. “Você tem tanto valor quanto qualquer outra pessoa. Você merece as mesmas liberdades que todo o mundo.”

Naquele momento eu me dei um pouco de folga. Eu poderia ter deixado meu filho levar Rino ao Walmart e enfrentado as consequências, se aparecessem. Mas, em vez disso, optei por agir proativamente para prevenir a situação. Não sei se foi a escolha certa, mas sei que foi a conversa certa que tive com ele.

Não é justo que ele herde o viés e a injustiça que acompanham uma sociedade racista. Os ombrinhos dele são pequenos demais para carregar esse peso. E há horas que eu mesma não tenho as respostas – eu também nem sempre sei como enfrentar tudo isso.

Mas sei que é importante deitar as bases agora.

Um dia destes meu lindo filhinho negro será um lindo homem negro. Estou discutindo essas questões com ele agora, por mais que doa, para que que ele esteja preparado quando chegar à idade em que o mundo deixar de dizer que ele é bonitinho e começar a enxergá-lo como uma ameaça. Pais negros em todo o mundo compartilham minha experiência. Para nós, amar nossos filhos quer dizer impor limites a eles. Sabemos que, se não colocarmos esses limites e restrições desde cedo, a falta deles pode custar a vida de nossos filhos.

E esse é um risco que não estou disposta a correr.

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

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