A revista científica americana Cell trouxe recentemente um alerta, assinado por reitores, catedráticos e professores acadêmicos dos EUA, sobre as disparidades de apoio a projetos de pesquisas coordenados por cientistas negros. De acordo com o artigo, publicado na edição de 26 de janeiro, pesquisadores negros ganham 55% do que seus colegas brancos com desempenho semelhante.
No Brasil, apesar de políticas afirmativas que, principalmente de 20 anos para cá, contribuíram para que negros tivessem acessos ao ensino universitário, o pesquisador negro também enfrenta disparidades e invisibilidade. Algumas iniciativas buscam enfrentar o problema. A cada dois anos ocorre, por exemplo, o Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros – a próxima edição, em 2022, será no Recife.
“São espaços de sociabilidade científica e de luta antirracista de cientistas negras negros”, esclarece o historiador Cleber Santos Vieira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
Fundada há 21 anos, a ABPN, segundo Vieira, “pensa e realiza ciência na perspectiva de intelectuais negros, historicamente invisibilizados pelo racismo estrutural”. Em 2007, sob a mesma premissa, foi fundada a Associação de Pesquisadores Negros da Bahia (APNB).
“Homem branco como sujeito universal”
Para a química Anna Maria Benite, professora da Universidade Federal de Goiás, essa invisibilidade do pesquisador negro ocorre pela “manutenção da estrutura de poder” que tem como “sujeito universal o homem branco”.
“Tudo o que não é sujeito universal acaba sendo desqualificado. E se a gente pergunta para uma pessoa qual é a imagem que ela tem de um cientista, a resposta comum é o sujeito universal”, explica. “E eu sou [classificada como] uma negra ativista. É óbvio que meu corpo chega primeiro, mas é possível dizer que somos mulheres negras, militantes e também somos cientistas”, diz.
Benite ressalta que, no caso das mulheres, o preconceito é duplo, “porque a história brasileira” relegou à mulher negra “lugares de subalternidade”. “Por isso, estamos discutindo sobre o reconhecimento das mulheres negras nas produção de ciência. Se isso já existisse [esse reconhecimento], poderíamos discutir sobre a produção dessas mulheres”, afirma.
Degraus acadêmicos
Para o historiador Paulino Cardoso, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e um dos fundadores da APNB, as políticas afirmativas dos últimos anos abriram a universidade para docentes e pesquisadores afrodescendentes. Por outro lado, isso fez com que fosse necessário “enfrentar a dominação” nesse espaço “responsável pela legitimação das hierarquias sociais em nossa sociedade”, diz ele.
Por isso, as entidades criadas são importantes. “Ao focar na luta institucional, pensávamos nos núcleos como espaço para tensionar as universidades a aderir a políticas de promoção de igualdade e diversidade, tanto no acesso e permanência de estudantes, como no repensar de currículos coloniais e eurocêntricos.”
Pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o historiador Philippe Arthur dos Reis acredita que, no meio acadêmico, o problema esteja mais bem resolvido hoje. “Em nossos círculos, entre nossos pares, somos visíveis”, comenta.
Mas ele aponta dois problemas nessa configuração. O primeiro é a “obrigatoriedade” imposta pela sociedade de que cientistas negros e negras tenham de se debruçar sobre os chamados “temas identitários”. “É evidente que sentimos na pele tudo isso, mas nossa contribuição pode ir além das questões raciais”, atenta ele. “Podemos acrescentar sobre outros pontos da sociedade.”
O outro problema – e aí ele reconhece uma invisibilização – é a dificuldade maior que o pesquisador negro tem em publicizar o conhecimento acadêmico, ou seja, fazer a divulgação científica. “A mídia, quando busca debater ou repercutir algum assunto, costuma chamar em geral pessoas brancas, que já possuem um respaldo socialmente aceito. Isso está intimamente ligado ao racismo estrutural do Brasil, conforme a própria história evidencia”, ressalta.
Entreviste um negro
E foi justamente para tentar diminuir esse problema que a jornalista Helaine Martins criou a plataforma Entreviste Um Negro. Ela passou a refletir e se incomodar com a invisibilidade de vozes de especialistas negros.
“Comecei a prestar atenção na cobertura jornalística de TV e percebia que o especialista era sempre branco”, conta. “A desculpa era sempre de que havia uma suposta ausência de profissionais negros qualificados, um ‘ah, eu não entrevisto negro porque eu não encontro especialista negro’. E isso parte de um estereótipo racista de uma sociedade que não nos vê como intelectuais, como produtores de conhecimento.”
A iniciativa começou em 2015, como um banco de fontes para profissionais da imprensa, com especialistas negros das mais diversas áreas. “Seja para pautas com recorte étnico-racial ou não. Pessoas negras não falam só sobre racismo. Essa é uma das principais bandeiras do projeto”, frisa Martins. “Nosso esforço é em manter um banco de fontes com especialistas em áreas bem diversas, especialmente naquelas em que pessoas negras são mais invisibilizadas, como economia, física, medicina… Nosso objetivo é quebrar essa lógica de que pessoas negras correspondem a um lugar de vítima social na imprensa. Nós podemos falar sobre tudo.”
Hoje o Entreviste Um Negro é mais do que um catálogo de contatos. Helaine Martins e sua equipe também têm se dedicado a oferecer cursos e palestras sobre o tema e produzir conteúdos para abastecer suas redes sociais. Em breve, deve ser lançada uma campanha sobre jornalismo antirracista — em parceria com a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj).
Em comum, todas essas iniciativas buscam que os cientistas brasileiros negros sejam valorizados pelo conhecimento que produzem. Deixem de ser encarados como exceções, daquelas que só são lembradas em efemérides como o Dia da Consciência Negra. Que possam ser ouvidos como especialistas, considerando os temas que eles estudam. E que isso seja habitual.
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