Embora em meados dos anos 1980 com o poema “O fardo do homem branco”, já se falasse do complexo do branco salvador, ou white savior, como viralizou na cultura pop, ele existe, mesmo que ainda não nomeado, muito antes disso.
O termo, que é utilizado para narrativas em que um personagem, obviamente branco, torna-se o protagonista de uma história que, em tese, não deveria ser sua, tornando-se assim, um herói para aquela raça em questão que se encontra em situação de apuro, seja ela qual for, muçulmana, asiática, indígena – mas, como dita a nossa história, ela é quase sempre branca.
É necessário apontar que essa narrativa não se restringe somente à uma mídia, podendo estar presente em livros, pinturas, músicas, o que for. Mas aqui, focarei no universo cinematográfico como meu objeto de análise. Passando por clássicos como “O Sol é para Todos”, “Lawrence da Arábia” e “Dança com Lobos” até o cinema contemporâneo, com filmes como “Histórias Cruzadas” e o infame ganhador do Oscar de Melhor Filme de 2019, “Green Book”, a sétima arte está recheada de exemplos.
Ainda que seja uma arte muito querida para mim, em meu âmbito pessoal, é inegável o peso do papel do branco salvador em sua história. A história do cinema não seria a mesma sem este arquétipo de personagem. Seria muito, muito melhor. Mas, quando pensamos que um dos considerados “pais” do cinema, D. W. Griffith, era não somente abertamente racista (nos anos 1900 e 1910, quando o racismo era não só naturalizado, como dentro da lei), mas também, foi o criador do também infame “Nascimento de uma Nação”, de 1915. Um filme abertamente apoiador da Klux Klux Klan, e que usava do black face para retratar homens pretos como verdadeiros vilões. Ao mesmo tempo, Griffith foi o pioneiro em uma série de técnicas e linguagens cinematográficas, as quais são usadas até hoje.
Feita esta introdução, vamos agora para 2009. Avançamos muito, mas às vezes, ainda parece que não saímos do lugar. Foi neste ano que houve o lançamento do filme “Preciosa’, dirigido por um homem preto e baseado em um livro cuja autora também é preta.
Por que este filme é importante?
Precious é o nome da nossa protagonista. Uma adolescente pobre, preta e obesa, que sofre abusos físicos e psicológicos da mãe e foi violentada sexualmente pelo pai por muitos anos. Violência esta que gerou dois filhos.
Mas Precious sonha, sonha alto. Tem fantasias totalmente fora de seu contexto, idealiza um mundo completamente imaginário e impossível em sua realidade de abuso constante. Ainda analfabeta, ela entra em um curso comunitário onde conhece outros jovens de realidades tão duras quanto a sua. Faz conexões, ganha um sentimento de pertencimento que nunca teve em seu lar. Porém, isso não impede de contrair uma DST resultante dos estupros de seu próprio pai. Irei parar por aqui, é sofrimento demais.
Porém, o que me encanta em Precious é que não parece nenhum herói em cavalo branco para salvá-la e tirá-la daquela realidade. Nenhuma professora branca de bom coração que faz a benécia de a orientar e ter melhor condições de vida, nenhum agente social privilegiado e de pele clara que mostra um mundo de possibilidades para a menina. Independentemente de seu destino, todos os passos que Precious dá, ou ela o faz sozinha ou com os amigos da instituição em que se matriculou. Ela acaba sim por ter parceiros em sua jornada, mas são todos do mesmo mundo, mesma cor. São vivências similares que, quando compartilhadas com seus pares, se fortalecem.
Toda a história deste filme poderia ter sido facilmente arruinada se, digamos, um belo advogado branco surgisse e lutasse pela liberdade de Precious, por exemplo. Seria tudo jogado no lixo. Mas o filme vai na contramão desta narrativa pobre e colonialista que Hollywood parece tanto amar: somos nós por nós. Não precisamos de ninguém para contar nossas histórias, temos nossa própria voz e ela será ouvida. Não será abafada, censurada, muito menos, roubada por um estranho de outro mundo que jamais poderia se conectar com uma só característica da minha vida, de quem sou.
As narrativas de white savior apagam totalmente as histórias do povo preto, os colocam apenas como coitados, vítimas que precisam desesperadamente de um herói que não venha daquele local. Elas tornam os personagens pretos em meros enfeites no que, no final das contas, acaba por ser a história do branco de bom coração que deu sua alma para salvar aquele pobre ser. Palmas para ele!
Até as nossas histórias os brancos conseguem roubar de nós.
É claro que existem outros filmes além de Precious que foram por este caminho. Apenas veja o fenômeno do Pantera Negra que não me deixa mentir. Mas, para um filme de onze anos atrás, em que toda esta movimentação social em busca de narrativas mais representativas ainda não tinha tanta força, é admirável ver uma obra que deu este passo naquele momento.
Quem sabe sirva de inspiração para outras subversões artísticas contemporâneas, afinal, problema não falta, sabemos. O que falta é dar este primeiro passo dentro de uma indústria tão visceral e presa em seus próprios refúgios de conservadorismo como a cinematográfica.
Desafiar padrões de indústrias é desafiar gigantes. E de tempos em tempos, temos o privilégio de ver isso acontecer.
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