Como transformar Carolina Maria de Jesus em quadrinhos

Entrevista com os autores conta a história do projeto que pretende levar a escritora negra, Carolina Maria de Jesus, ainda mais longe no Brasil

Por Solon Neto Do Alma Preta

Sirlene Barbosa e João Pinheiro formam um casal de São Paulo-SP que resolveu dar contornos novos para a vida de Carolina Maria de Jesus ao transformá-la em quadrinhos. João é cartunista, tem 35 anos. Sirlene é mestra e doutoranda, além de professora e moradora no bairro paulistano de Itaquera. Ela tem a mesma idade de João.

O livro “Carolina em HQ” conta em formato de quadrinhos a biografia de uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos. Nascida em Minas Gerais, em 1914, Carolina Maria de Jesus tornou-se uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira e mundial. Sua obra mais famosa, “Quarto de Despejo”, reúne diversos diários de sua vida na favela do Canindé, zona norte de São Paulo, e foi um best-seller que a tornou conhecida no Brasil inteiro e lhe arrancou da miséria. Com um talento único, Carolina foi traduzida pelo menos 13 idiomas e escreveu mais de cinco mil páginas de relatos, romances, poemas, provérbios, peças de teatro, contos, letras de música. No entanto, morreu pobre, apesar de sua obra ter se tornado tão importante.

Foi essa vasta obra e sua importância para a memória e auto estima da população pobre e negra no Brasil que inspirou Sirlene e João a tranformarem sua história em quadrinhos.

Sirlene percebeu, através de uma pesquisa, que os Professores Orientadores de Sala de Leitura da Diretoria Regional de Educação de Itaquera (PMSP), pouco conheciam a obra de Carolina Maria de Jesus: “de 39 docentes, apenas seis conhecem Carolina, superficialmente, e nenhum deles realizou leituras de sua obra nas salas de leitura que coordenavam”.

Como se não bastasse isso, Sirlene fez um levantamento nas bibliotecas da cidade e constatou que a obra da escritora não estava completa nos locais. “Com apenas uma unidade de Quarto de Despejo em cada biblioteca e único volume de Diário de Bitita em toda rede, nos perguntamos: como a escritora será mais estudada e, portanto, conhecida, se as bibliotecas da metrópole de São Paulo não disponibilizam sua obra para os usuários?”.

Para ela, Carolina Maria de Jesus, que descreve como “escritora incrível e fundamental”, vai muito além de seu trabalho mais famoso, o aclamado “Quarto de Despejo”. As bibliotecas paulistanas, no entanto, não passam dessa obra em seus catálogos, o que impossibilita que a escritora seja mais conhecida e estudada.

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Pensando em como mudar essa realidade, Sirlene e João perceberam que a população negra tem pouca representação nas páginas dos quadrinhos. Daí, partiu a ideia de transformar Carolina Maria em HQ, de forma que pudesse chegar a mais pessoas. O projeto dos dois é ambicioso: “propomos contar a vida e parte da obra de Carolina, por meio de uma História em Quadrinhos e objetivamos que o livro chegue às bibliotecas e escolas de todo o país. Sim, nosso intuito é alcançar todo o Brasil, ir além de São Paulo. Desse modo queremos dar nossa colaboração para que o nome de Carolina continue sendo lembrado, não como um objeto estranho, como foi tratada na época de sua aparição, mas como potencial humano e a escritora que foi”.

Os autores ressaltam a necessidade de mostrar a força de uma mulher negra que contrariou a tradicional literatura brasileira, que para eles continua branca e de elite. “Também buscamos ressaltar o seu protagonismo em vida, sua insistência em ser enunciadora de sua própria história e não mero objeto de curiosidade. Sua negação à tentativa de mercantilizar sua imagem fez com que, após sucesso estrondoso, a elite perdesse o interesse nela, e consequentemente a relegasse ao esquecimento”.

Carolina Maria de Jesus permite muitos olhares, segundo João e Sirlene. “Como mulher, negra, mãe, única chefa de família, trabalhadora, escritora, compositora”. Eles acreditam que a obra em quadrinhos pode ampliar o alcance de sua história, fazer valer a Lei 10.639/2003 e “mostrar que uma mulher negra também pode ser escritora”, como disse Sirlene.

Os quadrinhos biográficos mesclam fatos conhecidos sobre Carolina, além de seus escritos ficcionais e autobiográficos. “Buscamos uma narrativa acessível para contar sua vida atribulada, porém repleta de esperança, capacidade de superação e poesia”.

Como transformar Carolina Maria de Jesus em Quadrinhos

O casal levou cerca de três anos para realizar a pesquisa que resultou no livro “Carolina em HQ”. Ao longo desse período eles entrevistaram pessoas próximas à escritora e viajaram para conhecer seus passos, como quando conheceram a cidade em que Carolina nasceu. “No início de 2015, estivemos em Sacramento (MG), cidade natal de Carolina e conhecemos o terreno onde ficava a casa onde ela morou na infância, o colégio que estudou e tivemos acesso a alguns de seus manuscritos, fotos, objetos pessoais, que estão guardados no acervo da cidade, tudo mediado pelo professor e editor Carlos Alberto Cerchi. Nesse encontro, ele convidou o João para fazer a capa e ilustrações internas para a segunda edição do Cinderela Negra. Foi uma baita honra”. Eles contam que o livro “Cinderela Negra”, de José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M Levine, foi uma das obras essenciais para a pesquisa de “Carolina em HQ”.

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Não foi fácil conseguir financiamento para escrever o livro. Apesar de já idealizado, os escritores levaram mais de um ano para conseguirem financiamento para realizar a obra. “Começamos em 2013 e queríamos lançar a HQ em 2014, por ocasião das comemorações do centenário da Carolina. Fizemos uma proposta e apresentamos para algumas editoras, mas todas recusaram. Em 2014 inscrevemos o projeto no ProaC 2014 e fomos selecionados. Finalmente, no final deste ano, começamos a trabalhar para valer na produção.”

O ProaC é uma política pública da secretaria de cultura do Estado de São Paulo, e financia projetos culturais como o de Sirlene e João.

Mesmo com o financiamento, não foi fácil realizar o trabalho, que exigiria uma dedicação exclusiva em um mercado difícil, que é o dos quadrinhos. Mas as motivações de João e Sirlene eram maiores. “A dificuldade é não poder se dedicar exclusivamente à produção da obra. É preciso abrir mão de muitas coisas para se fazer histórias em quadrinhos, mas nós topamos a empreitada por acreditarmos na importância do trabalho”.

Os autores conseguiram publicar o trabalho ao lado de uma editora, a “Veneta”. Mesmo assim, todo o trabalho envolvido em “Carolina em HQ” foi independente. Eles acreditam que formas alternativas de produção e divulgação sejam necessárias, e que os editais podem ajudar, porém o consumo continuará sendo um problema. “Acreditamos que mais editais como o ProaC, Programa VAI, apoio aos produtores independentes podem ajudar, mas a distribuição e fruição das obras para o público ainda continua sendo um problema. Quer dizer: como fazer chegar nossa produção às camadas mais pobres da população? Programas de incentivo à leitura, fortalecimento e ampliação das feiras independentes de cultura, grupos de leitura, cineclubes populares e saraus são algumas das alternativas”.

Satisfeitos com o trabalho, os autores agora se concentram em outros projetos. Sirlene se prepara para defender sua tese de doutorado, que investiga os efeitos de um “currículo descolonizado” no ensino de jovens negros na educação básica de São Paulo. Para ela, o currículo atual “apresenta apenas a voz do europeu branco e nossa cultura é formada pelas vozes do indígena, do negro e, também, mas não somente, do europeu colonizador”. Já João, aponta para uma novela, iniciada em 2007, e uma HQ em que pretende representar sua geração. “A história de um grupo de amigos crescendo nos anos 1980-90, na periferia da zona leste de São Paulo. Já tenho um primeiro argumento, mas ainda vai demorar um tempo para amadurecer e concretizar de fato”.

Os ecos do Quarto de Despejo: A vida de Carolina se entrelaça com a dos autores

A história de Carolina se entrelaça com as vidas dos autores. Nascidos e criados nas periferias de São Paulo, ambos têm a sensibilidade necessária para não só compreender as palavras de Carolina, mas para senti-las conversando com suas lembranças.

“Sou mulher negra, nasci, cresci e continuo morando na Zona Leste (Itaquera). Minha família, essencialmente, é formada por trabalhadores rurais que migraram para São Paulo, na década de 1970, para se tornarem operários”, lembra Sirlene, testemunha viva do processo de urbanização brasileiro, caótico e violento. “Sou de uma família de negros trabalhadores. Vi o extermínio de jovens negros, na década de 1990, período em que era adolescente; o desemprego bater na porta de muitos dos lares dos meus amigos, inclusive, no meu. O descaso com a educação, a violência policial e a pouca perspectiva que nos era ofertada. Tudo muito semelhante, separando o fato de eu residir em um apartamento popular e não em uma favela, aos fatos narrados no Quarto de Despejo”.

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João se vê como membro de uma geração que teve direitos roubados pela ditadura, e crê na necessidade de histórias como a de Carolina serem contadas para que não se perca a memória da periferia brasileira. “Trabalhar com a história da Carolina e também com a história de uma das primeiras favelas de São Paulo, pelos olhos de uma moradora (fonte primária), me fez olhar toda essa realidade periférica em perspectiva e assim pude refletir acerca do processo histórico que engendrou nossas periferias, […] uma imensa cidade dormitório precarizada, concebida para o despejo dos escravos modernos”. Para ele, 46 anos após a publicação de Quarto de Despejo, muita coisa não mudou. “Cabe-nos perguntar, hoje, se as Carolinas de todo o Brasil são menos escravas do custo de vida. E a mobilidade social dxs negrxs no Brasil, a quantas anda? O que dizer do já tão falado extermínio dos pretos no cotidiano das quebradas?”. João é confesso admirador do talento literário de Carolina Maria, pois quebrou diversos paradigmas e marcou seu nome na literatura brasileira e mundial.

Para ele, a cor da pele, mesmo na periferia, muda muita coisa. “Ainda vivo aqui e presencio o que acontece e sou consciente de como ter uma pele branca, no contexto periférico, serve como uma espécie de escudo, um salvo-conduto.”

Já Sirlene, aproxima seus sonhos dos da escritora. Se Carolina sonhou e tornou-se escritora, Sirlene realizou o desejo de ter formação acadêmica. “Essas portas ainda são muito estreitas e brancas. À época de minha graduação, foi preciso arrombá-la; Carolina fez o mesmo com a literatura: deixou de ser objeto e passou a protagonizar. Nisso temos muito em comum”.

Serviço

AUTOR: Sirlene Barbosa / João Pinheiro
CATEGORIA: história em quadrinhos
Nº DE PÁGINAS: 128
FORMATO: 17×24
PESO: 0,400g
ISBN: 9788563137586

Onde comprar:

Amazon: http://amzn.to/1ZRFJdn
Cultura: http://goo.gl/r69FTF
Saraiva: http://goo.gl/l60OS2
Loja Veneta: http://goo.gl/O3ptEg

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