Conceição Evaristo: “Para dizer que temos democracia racial, a pessoa tem de ser alienada ou cínica”

Autora escreve desde os anos 1980, mas somente na última década foi descoberta por um público mais amplo do que o Movimento Negro

Por CARLOS ANDRÉ MOREIRA, do  GaúchaZH

Este ano, a escritora foi a homenageada oficial da FestiPoa Literária e passou três dias em Porto Alegre, lotando os auditórios André Ávila / Agencia RBS

Em 2015, Conceição Evaristo esteve em Paraty como convidada de uma programação paralela em uma edição do evento criticada por não ter convidado negro de peso. Em 2017, ela foi uma das primeiras confirmadas para a festa literária e sua mesa foi das mais concorridas. Os dois momentos ilustram como a obra da autora, que escreve desde os anos 1980 e estreou na literatura em 1990, só na última década foi descoberta por um público mais amplo do que o Movimento Negro. Aos 71 anos, nascida em uma favela de Belo Horizonte, Conceição se formou professora, com doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Este ano, ela foi a homenageada oficial da FestiPoa Literária e passou três dias em Porto Alegre, lotando os auditórios. Após palestra na PUCRS, ela deu entrevista a GaúchaZH.

A senhora vem se dedicando à literatura desde os anos 1990, mas seu trabalho alcançou uma grande ressonância de público e crítica nos últimos anos. Foi preciso tempo para que o público estivesse maduro para a sua literatura?

Eu vejo também como um trabalho que veio sedimentando ao longo do tempo. Na verdade, não foi nada repentino. A minha primeira publicação foi em 1990. O meu primeiro lugar de recepção foi dentro do movimento social negro, ou seja, foi entre meus pares. E esses textos eram levados para salas de aulas, faculdades, mestrados, doutorados. Agora, houve também um momento que foi muito importante, que foi o livro Ponciá Vicêncio ser indicado ao vestibular na Federal de Minas, primeiro, e em outras cinco universidades. Depois, foi indicado no vestibular da Estadual de Londrina. E já faz dois anos que Olhos D’Água está indicado no vestibular daqui. Portanto, o vestibular amplia muito o leque de leitura. Tem também um público que é aquele que entra para as universidades. As ações afirmativas colocaram dentro da universidade um novo público, que muitas vezes está ligado também ao movimento social, tem uma ressonância do movimento negro, e isso também amplia o leque de leitores. E a mídia também deu visibilidade. A exposição Itaú-Cultural, o Prêmio Jabuti, a Flip, a presença que eu tive em alguns programas de televisão. Isso chama a atenção. Mas o que eu tenho afirmado é o seguinte: quando a mídia me descobre, eu já tinha meu público leitor, já tinha participação em eventos literários, já havia ido a Paris, aos Estados Unidos.

E esse processo poderia ser replicado para outros autores negros, outras autoras negras?

É o que eu desejo e o que daria significado a esse processo que eu estou vivendo hoje. Para nós que estamos inseridos dentro de um coletivo, dentro do movimento social, uma carreira individual ou que só me visibilize não basta. Claro que isso tudo me deixa feliz, ser a homenageada do FestiPoa é muito bom, mas o que a gente quer é o seguinte: que o fato de eu estar tendo uma visibilidade hoje desperte a curiosidade do público, que ele comece a questionar sobre a existência de escritoras e escritores negros, e que comece a procurar. E tem bastante, tem um grupo que está aí também e não tem ainda essa visibilidade que eu estou tendo.

Em 2015, quando a senhora foi convidada para uma programação paralela da Flip sem que houvesse nenhum autor negro na programação oficial, a discussão levantada correu o Brasil e provocou outros debates em outros eventos literários, até aqui na Feira do Livro, o que fez mais autores negros participarem de edições seguintes. Esse tipo de reivindicação tem mais ressonância hoje do que há 20 anos?

Com certeza. Você está falando da Flip de três anos atrás, quando uma das professoras da UFRJ, Giovana Xavier, escreveu um manifesto que chamou a festa de “Arraiá da Branquidade”, que circulou na rede. E quando estávamos numa mesa fomos questionadas se fomos nós que escrevemos o texto. Eu disse que não foi, mas que endossava o manifesto. E a partir dessa reivindicação, no ano passado a curadora nova da Flip, Josélia Aguiar, foi muito sensível a essa questão. Para mim, a Flip de 2017 inaugura outro modelo. Houve muitos leitores negros, que foram porque se sentiram representados. Os movimentos sociais têm esse poder de questionar. Não de mudar a estrutura, porque quem está na linha de comando não são os movimentos, mas eles têm essa potência de importunar.

Lima Barreto foi homenageado pela Flip e Carolina Maria de Jesus teve sua obra relançada recentemente, depois de anos fora de catálogo. O fato de que muitas vezes ainda se precisa reafirmar a importância de figuras como essa é um indício de que o cânone é fechado em um determinado perfil de escritor?

A gente sempre pergunta: quem tem o poder? Quem define esse cânone. As classes hegemônicas têm o poder, não só na literatura, mas literatura é o assunto aqui, têm o poder de criar a sua representação e criar o seu discurso. Os representantes dessas classes têm o poder de definir o que é literatura e o que não é. E aí eles canonizam ou elegem quem querem. E as outras criações, os outros discursos nascidos fora dessas classes são sempre vistos como discurso, como fala, como criação de segunda categoria. Mas hoje isso não se sustenta mais. Cada vez mais há escritas diversas, posicionamentos diversos, novas interpretações. Se antes o centro empurrava a periferia, hoje a periferia consegue tumultuar as bordas do centro. O centro hoje tem de se abrir, e muitas vezes se abre, não é pela compreensão do discurso do outro, mas porque precisa desse discurso do outro para se legitimar, para teoricamente dar a impressão de que mudou, de que é progressista. E enquanto isso, a periferia vai ganhando terreno. Mas as coisas só mudam mesmo a partir de quem está incomodado, porque quem está comodamente assentado admirando o que é canônico não vai mudar se não forem feitas determinadas exigências. E mesmo fazendo essas exigências é difícil.

Nesse panorama que a senhora descreveu, da periferia cutucando o centro, como a senhora vê a ascensão recente à cultura de massa de artistas e modos de expressão periféricos?

Para mim, é uma faca de dois gumes. Por um lado, na medida em que esses produtos culturais ganham uma amplitude e uma visibilização maiores, para o sujeito que está criando pode ser uma situação vantajosa, ou uma na qual ele se sente pessoalmente envaidecido. O que a gente não pode esquecer é que os centros hegemônicos têm essa capacidade de se apropriar e esvaziar essas manifestações. Tenho pensado muito na questão da apropriação cultural. E com ela se esvaziam as manifestações e quem ganha dinheiro costuma não ser essa periferia ou ser apenas um sujeito dela. É comum acontecer isso com esses produtos culturais feitos a partir das margens. O samba, por exemplo, quando começou, era coisa de preto e marginal. A capoeira também. Mas o que eu acho também é que a periferia encontra sempre maneiras de se renovar. O centro se apropria, a periferia cria outras formas. E quando se trata da eleição de um único sujeito para aparecer como o grande rapper, a grande cantora, ou até mesmo no meu caso, um grande nome da literatura, se você não estiver muito consciente, você corre o risco de se deixar tratar como grande excepcionalidade. E quando você é tratado como excepcionalidade, é retirado do coletivo. O sujeito fica com o mérito. E vivemos em uma sociedade competitiva em que o sujeito é estimulado a construir uma carreira pessoal. Aquele que for mais forte, mais esperto, é o que vence. E por isso eu falo de uma faca de dois gumes. É preciso ter muito cuidado porque senão esses criadores da periferia acabam sendo engolidos por um sistema sem nenhum retorno para a coletividade.

E como um artista da periferia pode equilibrar esse risco. Porque ele é um modelo para outros como ele, mas até onde ir sem ser essa excepcionalidade que a senhora descreve?

Acho que é justamente não perdendo o compromisso com a coletividade. O movimento negro, o movimento das mulheres, estamos usando uma frase que pode ser chavão mas é o que nos propomos a fazer. Uma sobe e puxa a outra. Então, na medida em que essas pessoas que estão tendo destaque compactuam com a luta e com o grupo que as sustenta… Vamos dar um exemplo de um cantor de rap. Se ele já tem uma certa fama, ele pode fazer uma apresentação e chamar outros para cantar, para gravar, citar outros em entrevistas. No meu caso, literatura, eu tenho tido muito pouco tempo nos últimos meses, mas digo sim sempre que uma pessoa mais jovem me pede um prefácio, uma apresentação. Tenho um projeto de, no ano que vem, ler a escrita de meninas que estão surgindo agora, escrever um livro de ensaios sobre essas autoras, porque hoje a minha voz já tem possibilidade de referendar outras pessoas. É um trabalho pequeno diante dessa estrutura, mas é o que é possível fazer.

Os centros hegemônicos têm essa capacidade de se apropriar e esvaziar manifestações. Quando se trata da eleição de um único sujeito para aparecer como o grande rapper, se você não estiver muito consciente, corre o risco de se deixar tratar como grande excepcionalidade. E quando você é tratado como excepcionalidade, é retirado do coletivo. O sujeito fica com o mérito.

CONCEIÇÃO EVARISTO

Professora e escritora

A senhora comentou que as cotas foram também responsáveis pela recepção de seu trabalho nas universidades. Como vê o atual momento em que ressurgem tantas críticas ao modelo?

Não tem mais retorno. Uma vez instituídas as cotas, acho que não há mais retorno, não tem mais como anular os efeitos delas. Hoje, a gente tem um grupo de jovens, homens e mulheres negros, que estão dentro das universidades, e um grupo consciente, que chegou lá não para ser subalternizado, que já tem consciência dos seus direitos e que se propõe a levar essa luta. Agora, é um embate que ainda vai continuar, porque não são todas as universidades que assumiram o sistema de cotas. Muitos dos alunos cotistas são discriminados ainda quando entram na universidade. Apesar de, neste momento, muitas conquistas sociais estarem sendo anuladas, acredito que elas devem se efetivar ao longo do tempo. Eu não posso perder essas esperanças. Até porque não é uma luta que começou agora. Em 1945, o Abdias do Nascimento, no Teatro Experimental do Negro, já apresentava algumas propostas que poderiam ser lidas hoje como ações afirmativas. Há períodos da história que determinadas ações podem ser abafadas ou então podem ser silenciadas mesmo. Mas há um momento em que a gente vai tomar com toda a veemência aquilo que foi proposto.

O atual quadro de polarização política parece ter exacerbado manifestações extremas. A senhora pensa que ele exacerbou também o racismo latente da sociedade?

Tenho dito que a sociedade brasileira hoje tem um confronto com os negros que se torna cada vez mais explícito, pelo menos em termos de discurso. Hoje, qualquer brasileiro, negro ou branco, para dizer que temos uma democracia racial, a pessoa tem de ser muito alienada ou muito cínica. A questão racial no Brasil está posta. O que não era discutido está sendo discutido. Com a presença de negros na universidade, hoje acho que a comunidade negra é mais propositiva. Não é mais o caso apenas de apontar o racismo, mas de procurar a sua solução. E com isso, muitos dos racistas incubados estão mesmo saindo do armário, como estão saindo as pessoas homofóbicas, os intransigentes religiosos. Acho que a ação e a reação estão muito mais explícitas. Mas, ao mesmo tempo, se tornou mais perigoso inclusive reagir. Porque temos uma sociedade e grupos coletivos que estão de olho. Por exemplo, essa novela nova da Globo passada na Bahia (O Segundo Sol, criticada por ativistas e artistas negros pelo elenco majoritariamente branco). Há uns anos, não é que teria passado batido, mas não se teria o número de reações que se teve agora, quando artistas negros estão se pronunciando e dizendo: “Eu poderia ter feito um papel nessa novela”. É preciso lembrar que a primeira versão, décadas atrás, de Gabriela Cravo e Canela, quase foi protagonizada pela Vera Manhães (atriz e modelo, mãe de Camila Pitanga), e ela acabou substituída pela Sônia Braga, e isso foi muito pouco discutido na época. Hoje não, há um grupo nas redes sociais que questiona isso. O que há tempos atrás no Brasil era silenciado, hoje é mais difícil esse silêncio persistir.

A senhora tem uma perspectiva otimista desse embate?

Esse nosso processo histórico é de ir e vir. E esse voltar faz parte do próprio amadurecimento, para a gente pensar em que se falhou, quais foram as lacunas que a gente deixou. Agora, eu preciso acreditar que um dia, como somos capazes de fabricar desencontros, humilhação, fome, injustiça, um dia seremos capazes de construir o contrário. Não sei quando, mas a gente não pode perder a perspectiva de que é possível. A história da Humanidade é essa o tempo todo, a luta pela justiça enquanto na maior parte do tempo é a injustiça que predomina. E aí é preciso acreditar nas pessoas de bem, mas nas verdadeiras pessoas de bem, que somos nós, não aquelas que se denominam “de bem”, porque já vimos que de bem elas não têm nada.

Como a senhora vê o quadro eleitoral? Muitas pessoas ligadas ao próprio Movimento Negro comentam que as atuais discussões mesmo no campo da esquerda são as mesmas de sempre, para a classe de sempre, e não se sentem impelidas ou convocadas a tomar parte disso.

A questão negra, em termos de poder político, ela foi ainda muito pouco pensada no Brasil. No Rio de Janeiro, considero que tivemos um momento importante que foi o do governo Brizola. O quinto compromisso da carta partidária era com “negros, mulheres e índios”. Na verdade, se tem um compromisso partidário, mas entre a teoria e a prática é bem mais complicado. Não podemos negar que, pelo menos nas ações afirmativas, a coletividade negra teve um certo avanço no governo Lula. Recordando também que as discussões das ações afirmativas não começam no governo Lula, e sim anteriormente no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a dona Ruth Cardoso. O que não podemos nos iludir, entretanto, é que nenhum partido político comprou profundamente a questão negra. O que aconteceu no governo Lula? Tivemos um governo que foi sensível a demandas populares, não há como negar. Mas nós negros, dentro desse processo histórico brasileiro, temos uma luta eterna. Em momento algum a nação brasileira reconheceu a grande dívida que tem com a comunidade negra. As ações afirmativas são uma tentativa nesse sentido. Mas qualquer partido político que esteja no poder, esquerda, direita, centro, nossa luta ainda é muito específica e precisa continuar.

Obras da escritora

PONCIÁ VICÊNCIO (2003)

Pallas / Divulgação

Romance mais conhecido e celebrado, gira em torno de questões familiares e do passado negro. A Ponciá do título é uma mulher que vive na cidade, mas cujo passado está ligado ao dono das terras nas quais seus antepassados viviam escravizados _ e despojados de nomes de família, já que eram posse de um mesmo senhor, acabaram por “herdar” seu sobrenome. É um romance sobre o violento desenraizamento da população negra no Brasil, com suas origens e história apagadas pela escravidão. Pallas, 120 páginas, R$ 33.

BECOS DA MEMÓRIA (2006)

Joyce Fonseca / Pallas Editora

Escrito entre 1987 e 1988, só foi lançado quase 20 anos depois, em 2006, após a escritora publicar poemas e contos em revistas e ter conseguido boa repercussão com Ponciá Vicêncio (2003). O romance tem como foco a vida de Maria-Nova, jovem sensível e um tanto melancólica, que se assusta e se maravilha com as histórias das pessoas próximas de si, familiares e outros habitantes da favela em que nasceu. O espaço, no entanto, está em risco por conta de uma construtora que, aos poucos, desapropria quem vive nos barracos para ali construir um condomínio. Pallas, 200 páginas, R$ 36.

OLHOS D’ÁGUA (2014)

Editora Pallas / Reprodução

Reunião de 15 contos, a maioria protagonizados por mulheres negras, quase sempre moradoras do áspero espaço urbano vivendo em situações extremamente vulneráveis. São mulheres como Ana Davenga, que morre grávida metralhada, ou Maria, que é linchada pelos viajantes de um ônibus assaltado por acharem que ela conhecia os ladrões. Ou Natalina, várias vezes contratada como mãe de aluguel. São algumas das narrativas mais impactantes de Conceição. Pallas/FBN, 114 páginas, R$ 25.

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