A consciência é negra: do gênero feminino

Mas não é amada (por quê?)

Por Vanda Albuquerque e Ellen Paes via Guest Post para o Portal Geledés

Bem antes da década de 60 e 70, quando os movimentos libertários ganharam força no ocidente, destacamos aqui o Feminismo, suas militantes receberam vários rótulos: feias, mal amadas, loucas, etc. O mundo desconhecia o que aquelas feias poderiam conquistar: direito ao voto, acesso à pílula contraceptiva, leis mais rígidas para violência contra a mulher, mais igualdade no trabalho, e coisas, digamos assim, mais básicas como direito de usar calças. Pois é, pasmem, se você leitora, hoje, usa calças sem chocar a sociedade, creia, foi porque alguma feia, louca e mal amada lutou por isso.

Naquele período a mídia nos pintava assim, e naquele período, a vida era bem dura para uma mulher que contestasse a `ordem´ da vida. Bom, agora pensem em uma mulher negra naquele mesmo período. Se logo lhe vem à cabeça que desde 1888 somos libertas da escravidão (tendo a escravidão oficial durado 388 anos – vejam bem, mais de um terço de vida da pátria após o descobrimento), então viva! Sua memória histórica vai bem.

Mas vai melhor ainda se você se recordar em quais condições essa libertação se deu. Como alerta o artigo “ Nossa Insurreição da Consciência” publicado pela Carta Potiguar: “Se para o homem negro o sistema capitalista minou sua liberdade econômica e moral, para as mulheres negras, não parou por aí, o pior ponto de partida foi tê-las lançado a exploração sexual como possibilidade de existência. Algo que deveria ficar mais claro nos livros de história, geografia e sociologia, é o passado de exploração e alienação dos corpos negros, que tem reproduzido estereótipos e estigmas sobre nós.” (Grifos nossos).

Se naqueles períodos as dificuldades para uma mulher negra eram grandes, nos tempos de hoje a situação continua complicada. Com a carga histórica de opressão, a massiva maioria das mulheres negras está em trabalhos domésticos, com pouco acesso à educação formal e superior, além, claro, de todos os entraves de nosso traço de gênero. Basta lembrar que apenas em 2013 (ano passado!) uma empregada doméstica adquiriu direitos trabalhistas no Brasil. É… é de pasmar! E a nós, de enraivecer. Vale a leitura da análise “As mulheres negras no trabalho doméstico” publicado pelo IPEA em:IPEA

Então, afinal, por que as ‘raivosas’ feministas convidam a sociedade natalense a boicotar a música “MaNêga” do artista mossoroense Artur Soares? Já que a música tem um ótimo suingue e conta com a participação de outras/outros artistas?

Não é nada apenas pessoal, já que para nós, feministas, o que é pessoal é também é político. Nosso boicote é por perspectiva ideológica de vida, para a qual defendemos que não cabe prender / maltratar e voltar pra senzala. Nem mesmo em nome de um romantizado amor, que parece bem sedutor em telenovelas e nas fotos de folhetins de celebridades. Mas na prática, com a lupa da vida cotidiana… a prisão e os maus-tratos nos roubam a alma, e, por fim, acreditem: nos ceifam a vida.

Segundo Sexo, Segunda Raça – mal-amadas por que e por quem?

Dandara, Benguela, Carolina de Jesus e a potiguar Auta de Souza.

Na música, Nina Simone, uma grande mulher de luta e de arte. No Brasil, outras, entre elas, Leci Brandão. Que usaram suas artes pra desanuviar dores de desrespeito e violências das mais variadas sofridas no cotidiano.

Mulheres negras e talentosas. Mulheres que foram mal-amadas em algum momento. Difícil ter alguém que não tenha sido em algum momento da vida.

Sobre sermos mal amadas, recomendamos a leitura a seguir com boa explicação: “Toda Feminista é mal amada”e completamos: é verdade que em muitos momentos fiquemos raivosas, afinal, questionar, se incomodar com a cultura sexista, patriarcal, racista e enfrentar o status quo não é tarefa fácil, nem acontece precocemente. Só que nunca é tarde. Porque, afinal, enguiçar-se em reflexões e ações opressoras de um passado que teima em permanecer, não é nada amável, bonito, simpático ou oxigenador do debate. Temos o direito a ter raiva. A não sermos maleáveis.

“Mais amor por favor”, dizem homens, em seus slogans comerciais de lutas oportunistas, com suas senzalas sexuais engessadas nas cabeças, em suas músicas, em suas colunas de jornais, comandados por mais homens brancos, que tiveram todos os seus espaços garantidos na história até hoje.

É fácil pedir amor de um lugar garantido, privilegiado e legitimado pela sociedade, quando a sua voz – falando sobre a nossa luta e a nossa situação – é mais ouvida. Na arte e na mídia, em suas panelinhas culturais, movidas por interesses sociais e institucionais escusos, precisamos escutar homens brancos falando por nós, analisando e categorizando nossas demandas. Somos mal amadas porque, obviamente, a vida de uma mulher gira em torno deles.

Não. Temos o direito de não aceitar e de não sermos complacentes. Não temos que nos colocar em nossos lugares: o de lavar roupa. Nossos espaços, somos nós quem construímos. São anos sendo, não só o Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, mas também a Segunda Raça. Não me venham falar sobre como devo sentir minha opressão. Ou sobre como outras mulheres negras não enxergam a opressão que são obrigadas a reproduzir pra manter os opressores como aliados.

Estamos aqui pra dizer com todas as letras que não somos tuas negas. Apesar de, a todo o momento, em nossa vida, ter alguém, alguma música, alguma marchinha, hino de calouro de universidade, série de TV ou algum homem dizendo que sim: estamos disponíveis ou deveríamos querer estar. E se não estão e não gostamos da homenagem: mais amor, por favor. Mais tolerância, por favor.

Desculpa, mas não. Quando você é o primeiro a não tolerar a minha voz e o meu lugar. Mesmo quando dizemos que não: nós não queremos ser pegas na senzala, nem que isso pareça romântico. Nem que isso seja justificado. E somos mal amadas sim, por quem não nos interessa. Somos infinitamente amadas por outros, a quem escolhemos e aos quais consentimos nos amar. A boa notícia é que eles existem, a despeito de todo o sistema. Somos amadas, livres e fazemos sexo com quem quisermos, a hora que quisermos. Estamos, com isso, dizendo que não nos interessa sermos amadas por quem que quer nos possuir. Por quem ainda tem dentro de si uma senzala imaginária ou se sente o dono do quilombo.

A nossa consciência é negra. Do gênero feminino. E com reflexão feminista, sim. Amamos com amor e lutamos pra sermos amadas e respeitadas, mesmo que isso seja interpretado como raiva.

Você, do seu lugar de privilégio, é bem-vindo. Mas convidamos a escutar mais e falar menos, se quer mesmo ajudar e homenagear.

Um pouco de empatia com a dor alheia não faz mal a ninguém.

Feliz dia da consciência.

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