Construção de hidrelétrica é ameaça para comunidade kalunga que vive há 300 anos no maior quilombo do Brasil

Empresa tenta há 20 anos construir hidrelétrica. Emival Caiado, presidente da Rialma, disse ao G1 que ‘desiste’ do empreendimento, mas vai passar projeto para outra empresa. Impacto seria direto nas famílias que vivem no ‘Vão de Almas’, uma das 39 comunidades do território.

Por Paula Paiva Paulo, do G1

O território kalunga tem 261 mil hectares reconhecidos pelo estado brasileiro. Com cerca de 300 anos de ocupação, o lugar segue conservado. — Foto: Fábio Tito/G1

Há muitas lendas e versões sobre o nome do Rio das Almas, que corta o nordeste de Goiás. Todas elas, porém, envolvem mortes ou algum relato trágico. É por isso que, quando esse curso de água passa em uma parte do território kalunga, um território quilombola, os locais o chamam de Rio Branco.

Além das lendas, o rio é alvo de outro temor dos kalungas: o projeto de construção da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Mônica. Há 20 anos, a empresa Rialma, de Emival Caiado, propõe instalar no território Kalunga a hidrelétrica. Emival é primo do político local e hoje governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

O projeto sofre resistência dos moradores quilombolas e até uma Ação Civil Pública foi aberta pelo Ministério Público Federal (MPF). Seja como Rio das Almas ou Rio Branco, é deste rio que parte dos kalungas tiram água para beber, tomar banho e cozinhar.

A água encanada e o saneamento ainda não chegaram para a comunidade Vão de Almas, que seria afetada diretamente pelo empreendimento. Ao todo, os kalungas estão dividido em 39 comunidades pelo território. São cerca de 8 mil quilombolas, sendo que 300 famílias vivem no Vão de Almas.

“Essa Pequena Central Hidrelétrica, ela pode ser pequena para eles, mas para nós é muito grande. A comunidade não quer” – Vilmar Souza, presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK)

Se mantido o projeto e a PCH Santa Mônica for instalada rio acima do território kalunga, na cidade de Cavalcante (GO), ela terá 30 megawatts de potência instalada. Para comparação, somente uma das 14 unidades de geração em Belo Monte tem capacidade para gerar 600 MW.

O projeto traz preocupação de impactos ambientais e sociais para os quilombolas. “Quatrocentos homens trabalhando aqui, a gente sabe que vai trazer muita coisa errada aqui para dentro”, disse Vilmar.

Rio das Almas recebe o nome de rio Branco em um trecho do território kalunga, em Goiás — Foto: Fábio Tito/G1

Segundo um laudo pericial produzido pelo MP de Goiás, que também era autor do processo, o Rio das Almas sequer tem vazão de água suficiente para nutrir uma hidrelétrica. Os dados apontados nos estudos estariam exagerados.

O laudo também critica a falta de indicação de programas de recuperação de áreas que seriam degradadas pelos canteiros de obras. Também não foram apresentados os planos de construção das estradas de acesso ao empreendimento. O impacto dessas vias, portanto, também permanece desconhecido.

Há ainda o questionamento sobre a falta de realização de consulta pública, como prevê a lei. A convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), tornada lei por decreto presidencial em 2004, prevê a necessidade de consultar os povos indígenas e comunidades tradicionais sobre medidas que os afetem, como grandes obras.

Segundo a Ação Civil Pública, “vê-se claramente que o empreendimento da Pequena Central Hidrelétrica Santa Mônica causará irremediáveis prejuízos às populações kalungas”.

É do rio que se tira a água para beber, tomar banho e cozinhar, já que a água encanada e o saneamento ainda não chegaram para a comunidade Vão de Almas. — Foto: Fábio Tito/G1

A advogada Vercilene Francisco Dias, da comunidade kalunga Vão do Moleque, vê ainda um motivo histórico para a preservação do local. A serra onde pode ser construída a hidrelétrica serviu de rota de fuga e proteção para os escravos que formaram o quilombo.

Mas há quem acredite que a hidrelétrica pode trazer melhores condições para a comunidade, como Alvino Cesário de Torres. O kalunga acha que o importante é a empresa conversar com os moradores e não prejudicar a comunidade.

“Se fizer uma aqui e deixar futuro pra população, pode. Eu não tenho muito o que aproveitar que eu já tenho 57 anos, posso morrer daqui até amanhã. Mas meu neto, meu bisneto, a geração daqui para frente, vai deixar uma boa vida para aqueles que vão permanecer”.

Em novembro de 2018, foi realizada uma audiência de conciliação, mas não se chegou a um acordo entre o MPF, representantes kalungas e a empresa Rialma.

A Secretaria de Meio Ambiente de Goiás (Semad), por meio de nota, informou que a PCH Santa Mônica “está dentro do cenário aprovado no Estudo Integrado de Bacias Hidrográficas (EIBH) do Rio das Almas. No entanto, o processo está paralisado devido a questões relativas à delimitação do território Kalunga”.

A pasta disse ainda que o Incra “não se manifestou de forma definitiva a respeito da questão territorial, de modo que o processo para a implantação da PCH depende deste posicionamento para que possa seguir adiante”. Além disso, a Ação Civil pública movida pelo MPF “pede a completa paralisação de toda e qualquer obra em curso e a suspensão do processo de licenciamento no âmbito da Semad”.

‘Eu desisto!’

Membro de uma família tradicional entre os políticos e ruralistas de Goiás, Emival Caiado respondeu à reportagem com uma carta de três páginas com o título “Eu desisto!”.

Nela, Emival afirmou que desistiu do projeto da PCH após 20 anos de tentativas. Ele admite, porém, que está em fase final de assinatura de contrato para transferir a titularidade da hidrelétrica para outra empresa, a Triton Energia.

Por esse motivo, Emival alega não ter “desistido oficialmente” do processo do MPF que pede a suspensão do licenciamento da hidrelétrica.

O empresário nega que a hidrelétrica não tenha passado por audiência pública. Segundo ele, ela foi a primeira do estado a passar por esse processo no Estado, ainda na década de 90. “Elaboramos três EIAs-RIMAS [estudos de impacto ambiental], realizamos cerca de seis audiências públicas e inúmeras reuniões com a população local”.

Emival diz ainda estimar que a cidade de Cavalcante poderia ter arrecadado R$ 106 milhões em impostos nos últimos 20 anos, caso a hidrelétrica estivesse funcionando. Ele contabiliza ainda entre os prejuízos a não criação de cerca de dois mil empregos durante a construção e a falta de energia elétrica para a região.

Sobre a vazão do Rio, o presidente afirma que em vez de prejudicá-la, a hidrelétrica irá regularizá-la. “As grandes enchentes que lá ocorrem seriam retidas e seriam liberadas ao longo do ano, facultando inclusive à população kalunga a possibilidade de efetuar irrigação no período seco do ano”.

O empresário informou que levou seus investimentos para o Nordeste, onde está construindo linhas de transmissão, subestações e um projeto de energia eólica no Rio Grande do Norte e na Paraíba.

“Aqui as pessoas não sabem se meu sobrenome se escreve com ‘K’ ou com ‘C’. Não há a mim perseguições políticas, e um licenciamento não demora mais que alguns meses” – Emival Caiado

Trajetória e luta dos kalungas

O quilombo kalunga se formou no início do século XVIII, por pessoas que fugiram do trabalho escravo em minas de ouro da região dos afluentes dos rios Tocantins e Paranã.

O acesso difícil, com serras altas e rios no caminho, os protegeu, e, mesmo após o fim da escravidão, foi também o que os deixou isolados por muitos anos.

Na primeira metade do século XX, a “Marcha para o Oeste”, promovida pelo governo Getúlio Vargas para incentivar a ocupação do Centro-Oeste expandiu as fronteiras agrícolas e agropecuárias para o Norte do estado de Goiás, pressionando a comunidade kalunga.

A mudança da capital para Brasília, em 1961, expandiu o sistema viário e aumentou a demanda por terras na região, causando conflitos com posseiros que já duram décadas.

Em 1991, o estado de Goiás sancionou a lei que constituiu o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. O texto da lei diz que o estado deve garantir aos habitantes “a propriedade exclusiva, a posse e a integridade territorial da área delimitada e protegê-la contra esbulhos possessórios”.

O território kalunga teve 261 mil hectares reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, autarquia federal vinculada ao Ministério da Cidadania, e pelo Incra. No entanto, nem todo o território já foi titulado, ou seja, não é toda essa área que teve a regularização fundiária concluída.

“Hoje nós temos 144 mil hectares titulados em nome da Associação Quilombo Kalunga”, disse Vilmar Souza, presidente da associação.

Além do questionamento sobre a Pequena Central Hidrelétrica, há outra Ação Civil Pública que contesta atividades comerciais no território. Também proposta pelo MPF, a ação mira a União e o Departamento Nacional de Produção Mineral por terem concedido licenças de pesquisa de mineração no território kalunga.

Enquanto processos de grandes empreendimentos correm na Justiça, os kalungas aguardam serviço básicos, como um posto de saúde. O médico mais próximo está na área urbana de Cavalcante, a duas horas da comunidade e com rios e serras no caminho.

No Vão de Almas, uma das localidades no território kalunga, as casas não têm banheiro, e uma cena da rotina são as mulheres com baldes na cabeça indo e voltando do rio onde lavam roupa, a louça, tomam banho, e bebem.

Algumas comunidades, como o Vão do Moleque, ainda não viram nem a luz elétrica chegar. E, por fim, a principal prioridade para os quilombolas é a construção de pontes, para que não fiquem isolados nos períodos de cheia.

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