Construindo uma comunidade de amor

Thich Nhat Hanh, monge budista, tem sido uma presença em minha vida, como um professor e guia, por mais de vinte anos. Nos últimos anos eu comecei a duvidar da conecção de coração que eu sentia com ele porque a gente nunca havia se encontrado ou falado um com o outro, e ainda assim seu trabalho estava sempre presente no meu. Comecei a sentir a necessidade de encontrá-lo cara a cara, mesmo enquanto minha intuição continuava dizendo que isso aconteceria na hora certa. Meu trabalho com o amor tem sido confiar que a intuição continuava dizendo que acontecereria quando fosse a hora certa. Meu trabalho com o amor tem sido confiar nesse conhecimento intuitivo.

Aqueles que me conhecem intimamente sabem que eu tenho contemplado o lugar e significado do amor nas nossas vidas e cultura por anos. Eles sabem que quando um assunto atrai minha imaginação intelectual e emocional, eu quero observá-lo de todos os ângulos, para conhecê-lo por dentro e por fora.

De acordo com como minha mente funciona, quando comecei a pensar profundamente sobre a metafísica do amor eu falei com todo mundo à minha volta sobre isso. Falei com grandes públicos e tive até uma conversa bem introdutória com crianças sobre como eles pensam sobre amor. Falei sobre amor em todos os estados, em todo lugar para qual viajei.

Para mim, todo o trabalho que faço é construir uma base de compaixão amorosa (loving-kindness). O amor ilumina as questões. E quando escrevo críticas sociais e culturais provocativas que desafiam as mentes dos leitores a pensar além dos paradigmas estabelecidos, penso nesse trabalho como amor em ação. Enquanto pode desafiar, perturbar e às vezes assustar ou enraivecer os leitores, o amor é sempre o lugar onde começo e termino.

Um tema central de All About Love é o fato de que desde a infância até nos tornarmos adultos, somos frequentemente ensinados suposições equivocadas e falsas sobre a naturaza do amor. Talvez a suposição falsa mais comum sobre o amor seja a que diz que amor significa que não seremos desafiados ou transformados. Sem dúvida, essa é a razão pela qual pessoas que leem sobre racismo, machismo, homofovia, religião etc. que desafiam suas suposições tendem a ver esse trabalho como severo, e não como amoroso.

De todas as definições de amor que abundam em nosso universo, um dos meus favoritos é o que é oferecido em The Road Less Traveled do psicanalista M. Scott Peck. Quando define o amor como “a vontade de se estender pelo propósito de nutrir o crescimento espiritual próprio ou de outro”, ele se baseia no trabalho de Erich Fromm para enfatizar de novo e de novo que o amor é primeiramente e principalmente exemplificado pela ação – pela prática – e não unicamente pelo sentimento.

The Art of Loving de Fromm foi publicado quando eu tinha quatro anos. Foi o livro para o qual me voltei no fm da adolescência, quando me senti confusa sobre a natureza do amor. Seu exemplo “amor é a preocupação ativa pela vida e crescimento do que amamos” fez sentido para mim então, e ainda faz. Peck estende essa definição. Sabendo que o mundo seria um paraíso de paz e justiça se os cidadãos globais compartilhassem uma definição comum de amor que guiaria nossos pensamentos e ações, eu clamo pela adoção dessa compreensão comum em All About Love: New Visions. Essa compreensão comum pode ser articulada em diferentes palavras carregando diferentes significados para diversas experiências e culturas.

Ao longo dos mais de vinte anos em que tenho escrito sobre o fim da dominação em qualquer forma que apareça (racismo, machismo, homofobia, classismo), venho continuamente buscando esses caminhos que levariam ao vim da violência e da injustiça. Como grande parte do que pensava sobre o amor no fim da minha adolescência envolvia amor romântico e familiar, foi só aos vinte e poucos, escrevendo teoria feminista, que comecei a pensar profundamente sobre amor em relação à dominação.

Durante meus primeiros anos na faculdade, a mensagem de amor de Martin Luther King como o caminho de acabar com o racismo e curar as feridas da dominação racial tinham começado a ser substituídas por um movimento black power que enfatizava resistência militante. Enquanto King havia pedido por não-violência e compaixão, este novo movimento nos pedia para endurecer nossos corações, para entrarmos em guerra contra nossos inimigos. Amar nossos inimigos, os líderes militantes nos disseram, nos fazia fracos e fáceis de subjugar, e muitos viraram as costas para a mensagem de King.

Enquanto a briga da luta antirracista de libertação era se afastar de um chamado por amor, o movimento das mulheres também lançou uma crítica ao amor, incentivando as mulheres a esquecer sobre o amor para que então pudéssemos nos empoderar. Quando eu tinha dezenove anos e participava dos grupos de desenvolvimento de consciência feminista, o amor era considerado irrelevante. Era nosso “vício no amor” que nos mantia dormindo com o inimigo (homens). Para sermos livres, nossa líder feminista militante nos disse, era necessário parar de colocar o amor como o centro de nossas imaginações e anseios. Amor poderia ser a ruína de uma boa mulher.

Esses dois movimentos por justiça social que capturaram os corações e a imaginação de nossa nação – movimentos que começaram com uma ética de amor – foram desafiadas por líderes que estavam muito mais interessados em questões de poder. No fim dos anos 70 já não era mais necessário silenciar as discussões sobre o amor; o assunto já não estava na agenda progressista.

Aqueles de nós que ainda ansiavam amar pareciam para os religiosos como o lugar da redenção. Procuramos em todo lugar, no mundo todo, por professores espirituais que pudessem nos ajudar a retornar ao amor. Minha busca me levou ao Budismo, guiado até lá pelos poetas Beat, pela minha interação pessoal com Gary Snyder. Em sua casa na montanha eu encontraria minha primeira monja budista e caminharia atentamente com ela, enquanto me perguntava se meu coraçãl poderia conhecer a doce paz que emanava dela como perfume.

Minha busca me levou ao trabalho de um monge budista que Martin Luther King havia conhecido e por quem tinha sido tocado – Thich Nhat Hanh. O primeiro trabalho desse novo professor na minha vida foi um livro de diálogo entre ele e Daniel Berrigan, The Raft Is Not The Shore.

Finalmente eu havia encontrado um mundo onde espiritualidade e política podiam se encontrar, onde não havia separação. De fato, nesse mundo todos os esforços para acabar com a dominação, para trazer paz e justiça, eram práticas espirituais. Eu não estava mais angustiada entre a luta política e a prática espiritual. E aqui estava o professor radical – um monge vietnamita vivendo em exílio – corajosamente declarando que “se você tem que escolher entre o Budismo e a paz, você deve escolher a paz”.

Diferentemente de amigos e camaradas brancos que frequentemente desdenhavam de mim porque eu não havia viajado para a Ásia ou estudado com professores importantes, Thich Nhat Hanh afirmava calmamente: “o Budismo está no seu coração. Mesmo que você não tenha um templo ou monges, você ainda pode ser um budista em seu coração e em sua vida”. Lendo as palavras dele eu senti um êxtase, e podia apenas repetir “fique calmo, coração”. Como alguém que vagando no deserto havia superado a sede. Eu havia encontrado água. Minha sede tinha sido extinta, e minha fome espiritual, intensificada.

Por um período de mais de dez anos saindo de casa para a faculdade eu havia me sentido puxada em todas as direções pelas lutas anti-racistas, pelo movimento feminista, liberação sexual, pelo fundamentalismo cristão da minha educação. Eu queria abraçar políticas radicais e ainda assim conhecer deus. Eu queria resistir e ser redimida. The Raft Is Not The Shore ajudou a fortalecer minha jornada espiritual. Apesar de não ter encontrado Thich Nhat Hanh, ele era o professor, junto com Chögyam Trungpa Rinpoche, que eram os guias que escolhi. Misturar os dois era uma combinação inflamável.

Como tudo ficou bem com minha alma, comecei a falar sobre o trabalho de Thich Nhat Hanh em meus livros, citando-o. Ele me ajudou a reunir teorias de recuperação política e recuperação espiritual. Por anos eu não quis encontrá-lo cara a cara por medo de me decepcionar. Vez ou outra eu planejava estar onde ele estava e o plano era interrompido. Nossos caminhos estavam se cruzando mas nunca nos encontrávamos.

Então de repente, de uma maneira maravilhosa e por acaso, estávamos nos encontrando. Finalmente em sua presença, eu me senti coberta por gratidão não só por ter tido a bênção de encontrá-lo, mas pelo puro espírito de amor nos ter conectado. Eu me senti extasiada. Meu coração pulou de alegria – esse encontro e reencontro de estar na presença de alguém que havia ensinado seu coração, alguém que havia estado com você em espírito em sua jornada.

A jornada também é para além do professor. É sempre um caminho para o coração. E a questão é sempre nossa unicidade com o espírito divino – nossa unição com toda a vida. Em 1975, Thich Nhat Hanh já estava compartilhando: “O caminho deve estar em você; o destino também deve estar em você e não em qualquer outro lugar no espaço ou tempo. Se esse tipo de autotransformação está sendo realizado em você, você vai chegar”.

Andando no caminho do amor em um domingo ensolarado para encontrar meu professor, encontrei a irmãChan Khong. Ela também me ensinou. Ela sentiu a prontidão do meu coração. Juntas, relembramos o professor que está em todos os lugares despertando o coração. Como ela escreve no fim de Learning True Love, “eu estou com você tanto quanto você já esteve comigo, e nós encorajamos uns aos outros para realizar nosso amor mais profundo, cuidado e generosidade juntos no caminho do amor”.

Bell Hooks: Comecei a escrever um livro sobre amor porque senti que os Estados Unidos está se afastando do amor. O movimento de diretos civis foi um movimento tão maravilhoso para justiça social porque o centro dele era o amor – amar a todos. Era acreditar, como você nos ensinou ontem, que podíamos sempre recomeçar; que podíamos sempre praticar o perdão. Eu não tenho que odiar nenhuma pessoa porque eu posso sempre recomeçar, posso sempre reconciliar. O que estou tentando entender é por que estamos nos afastando dessa ideia de comunidade de amor. Qual é seu pensamento sobre a razão pela qual as pessoas estão se afastando do amor, e como podemos fazer parte de mover nossa sociedade em direção ao amor.

Thich Nhat Nanh: Na nossa sanga budista, comunidade é o núcleo de tudo. A sanga é uma comunidade onde deve existir harmonia, paz e compreensão. É algo criado pela nossa vida cotidiana juntos. Se o amor está ali na comunidade, se nós estamos sendo nutridos pela harmonia da comunidade, então nunca teremos de nos afastar do amor.

A razão pela qual podemos perder isso é a de que estamos sempre olhando para fora de nós mesmos, pensando que o objeto de ação ou amor está lá fora. É por isso que permitimos que o amor, a harmonia e a compreensão madura escapem de nós mesmos. Acho que isso é o básico. É por isso que temos de voltar para nossa comunidade e renová-la. Então o amor vai crescer de novo. Compreensão e harmonia vão crescer de novo. Essa é a primeira coisa.

A segunda coisa é que somos nós mesmos que precisamos de amor, não é somente a sociedade, o mundo externo, que precisa de amor. Mas não podemos esperar que esse amor venha de fora de nós. Devemos nos perguntar se somos capazes de amar a nós mesmos assim como aos outros. Estamos tratando nosso corpo com gentileza – pela maneira com que comemos, bebemos, trabalhamos? Estamos nos tratando com alegria, delicadeza e paz? Ou estamos nos alimentando com toxinas que pegamos no mercado – os mercados espiritual, intelectual e de entretenimento?

Então a pergunta é se estamos praticando nos amar. Porque amor a nós mesmos significa amar nossa comunidade. Quando somos capazes de nos amar, nos nutrindo devidamente e não nos intoxicando, já estamos protegendo e nutrindo a sociedade; Porque no momento em que somos capazes de sorrir, de olhar para nós mesmos com compaixão, nosso mundo começa a mudar. Talvez não tenhamos feito nada, mas quando estamos relaxados, quando estamos em paz, quando somos capazes de sorrir e não sermos violentos na maneira como olhamos para o sistema, nesse momento já existe uma mudança no mundo.

Portanto a segunda ajuda, o segundo insight, é o de que entre o eu mesmo e o não-eu mesmo não existe separação real. Qualquer coisa que você faça para si mesmo, está fazendo para a sociedade ao mesmo tempo. E qualquer coisa que você faça para a sociedade você também está fazendo para si mesmo. Essa percepção é construída poderosamente na prática de “no-self” (sem autoidentificação).

Bell Hooks: Acho que um dos livros mais maravilhosos que Martin Luther King escreveu foi A Força do Amor. Sempre gostei por causa da palavra “força”, que contraria a noção ocidental que vê o amor como algo fácil. Em vez disso, Martin Luther King disse que você precisa ter coragem para amar, que você tem de ter uma vontade profunda para fazer o que é certo em relação ao amor, e isso não é fácil.

Thich Nhat Hanh: Martin Luther King estava entre nós como um irmão, um amigo, um líder. Ele conseguiu manter o amor vivo. Quando você o toca, você toca um bodhisattva, porque sua compreensão e amor eram capazes de fazê-lo guardar tudo para si. Ele tentou transmitir sua percepção e seu amor à comunidade, mas talvez não tenhamos recebido o suficiente. Ele estava tentando transmitir o que há de melhor para nós – sua bondade, seu amor, sua não-dualidade. Mas porque nos agarramos tanto a ele como pessoa, não trouxemos a essência do que ele estava ensinando para nossa comunidade. Então, agora que ele já não está mais aqui, estamos perdidos. Devemos estar atentos ao fato de que a propagação crucial que ele estava fazendo não era de poder, de autoridade ou de posição, mas a propagação do dharma. Isso significa amor.

Bell Hooks: Exato. Não era uma propagação de personalidade. Parte do porquê comecei a escrever sobre amor foi o sentimento de que, como você diz, a cultura está esquecendo o que ele ensinou. Nós colocamos o nome dele em cada vez mais ruas e escolas mas isso é quase irrelevante, porque o que precisa ser lembrado é a força para amar.

É daí que temos de extrair coragem – do espírito de amor, não da imagem do Martin Luther King. Isso é tão difícil no ocidente porque somos uma cultura muito voltada a imagem e personalidade. Por exemplo, por eu ter aprendido tanto de você por tantos anos da minha vida, pessoas me perguntam continuamente se eu já havia me encontrado com você.

Thich Nhat Hanh: (risos) Sim, eu entendo.

Bell Hooks: E eu disse sim, já o encontrei, porque ele me deu seu amor através dos ensinamentos, através da prática de atenção plena. Continuei tentando compartilhar com as pessoas que sim, eu gostaria de te encontrar um dia, mas o ponto é que estou vivendo e aprendendo de seu ensinamento.

Thich Nhat Hanh: Sim, isso mesmo. E essa é a essência de existir de maneira interdependente. A gente já se conhecia desde o começo (risos). Um começo com saudade e com bênçãos.

Bell Hooks: Exceto que você ensinou que estar na presença de seu professor pode também ser um momento de transformação. Então as pessoas dizem: é o suficiente ter aprendido de seus livros, ou você deve encontrá-lo, deve haver um encontro?

Thich Nhat Hanh: De fato, a verdade é que o professor está dentro de nós. Um bom professor é alguém que pode te ajudar a voltar e tocar o verdadeiro professor interno, porque você já tem a percepção dentro de você. Em budismo chamamos isso de natureza búdica. Você não precisa de alguém para transferir a natureza búdica para você, mas talvez você precise de um amigo que possa te ajudar a tocar aquela natureza de despertar e compreensão que funciona dentro de você.

Então um bom professor é alguém que te ajuda a retornar a um professor interno. O professor pode fazer isso de várias maneiras; ela ou ele não tem que te encontrar fisicamente. Sinto que tenho muitos estudantes reais que não encontrei. Muitos estão em mosteiros e nunca saíram. Outros estão na prisão. Mas em muitos casos eles praticam os ensinamentos muito melhor do que aqueles que me encontram diariamente. Isso é verdade. Quando eles leem um livro meu ou ouvem um áudio e tocam a percepção que está no interior deles, então eles me encontraram da maneira real. Esse é o encontro real.

Bell Hooks: Quero saber seus pensamentos sobre como nós aprendemos a amar um mundo cheio de justiça, mais do que se juntar a alguém só porque ele compartilha a mesma pele ou o mesmo idioma que nós. Eu te pergunto isso porque aprendi com a homenagem de Martin Luther King a sua compaixão por quem machucou seu país.

Thich Nhat Hanh: Esse é um assunto muito interessante. Foi uma questão importante para o Buda. A maneira como vemos justiça depende da nossa prática de olhar profundamente. Poidemos pesnar que justiça é todo mundo ser igual, tendo os mesmos direitos, compartilhando o mesmo tipo de vantagens, mas talvez não tenhamos tido a chance de olhar para a natureza da justiça em termos de não egoístas. Esse tipo de justiça é baseado na ideia de si mesmo, mas pode ser bem interessante explorar o conceito de justiça em termos não egoístas.

Bell Hooks: Acho que esse é exatamente o tipo de justiça sobre o qual Martin Luther King falou – uma justiça que era para todo mundo, sejam eles iguais ou não. Às vezes na vida todas as coisas são desiguais, então o que significa ter justiça quando não há igualdade? Um dos pais pode ser justo com um filho, mesmo que não sejam iguais. Acho que isso é frequentemente incompreendido no ocidente, onde as pessoas sentem que não pode haver justiça a não ser que tudo seja igual. É em parte por isso que sinto que devemos reaprender a maneira como pensamos sobre o amor, porque pensamos muito sobre o amor em termos de si mesmo.

Thich Nhat Hanh: A justiça é possível sem igualdade?

Bell Hooks: A justiça é possível sem igualdade, eu acredito, por causa da compaixão e da compreensão. Se tenho compaixão, então se tenho mais do que você, o que é desigual, vou continuar fazendo o que for justo com você.

Thich Nhat Hanh: Certo. E quem criou a desigualdade?

Bell Hooks: Bem, acho que a desigualdade está em nossas mentes. Acho que é isso que aprendemos na prática. Um dos conceitos sobre os quaisvocê e o Daniel Berrigan falaram em The Raft is Not the Shoew é que a ponte da ilusão precisa ser destruída para que uma ponte real seja construída. Uma das coisas que aprendemos é que a desigualdade é uma ilusão.

Thich Nnhat Hanh: Faz sentido (risos).

Bell Hooks: Antes de vir aqui eu estava lutando com a questão da raiva contra meu ex-namorado. Tomei meus votos como bodhisattva, então sempre fico deprimida quando tenho raiva. Cheguei a um ponto de desespero porque tinha muita dificuldade com a minha raiva em relação a esse homem. Então o darma de ontem falou sobre abraçar a nossa raiva, e usá-la, e deixá-la ir, isso foi essencial para mim nesse momento.

Thich Nhay Hanh: Você quer ser humana. Estar brava, está tudo bem. Mas não praticar não é bom. Estar com raiva, isso é bem humano. E aprender a sorrir para sua raiva e fazer as pazes com a sua raiva é muito legal. Essa é a coisa toda – o significado da prática, do aprendizado. Olhar bem para sua raiva pode transformá-la no tipo de energia que você precisa – compreensão e compaixão. É com energia negativa que você pode fazer energia positiva. Uma flor, mesmo que linda, vai se tornar adubo um dia, mas se você souber como transformar esse adubo novamente em uma flor, então você não precisa se preocupar. Você não tem que se preocupar sobre a sua raiva porque você sabe como lidar com ela – abraçar, reconhecer, e transformá-la. Então é por isso que é possível.

Bell Hooks: Acho que é isso que as pessoas não compreendem sobre o Martin Luther King dizendo para amar seus inimigos. Eles acham que ele está só usando essa frasezinha boba, mas o que ele quis dizer era que nós, como estadunidenses negros, precisamos deixar nossa raiva ir, porque ao segurá-la, nos seguramos para baixo. Nós nos oprimimos quando nos apegamos à raiva. Meus estudantes me dizem: não queremos amor! Estamos cansados de sermos amorosos! E digo a eles, se você está cansado de ser amoroso, então você nunca foi realmente amoroso, porque quando você é amoroso, você tem mais força. Como você nos disse ontem, nós nos fortalecemos no ato de amar. Acho que isso tem sido algo muito sofrido para os negros estadunidenses – sentir que não conseguimos amar nossos inimigos. As pessoas esquecem da grande tradição que temos, como negros estadunidenses, de praticar o perdão e a compaixão. E se negligenciamos essa tradição, sofremos.

Thich Nhat Hanh: Quando temos raiva em nós, sofremos. Quando temos discriminação em nós, sofremos. Quando temos o complexo de superioridade, sofremos. Quando temos o complexo de inferioridade, também sofremos. Então quando somos capazes de transformar essas coisas negativas em nós, somos livres e a felicidade é possível.

Se as pessoas que nos machucam tiverem esse tipo de energia dentro delas, como raiva ou desespero, então elas sofrem. Quando você vê que alguém sofre, você deve se motivar por um desejo de ajudá-lo a não sofrer mais. Isso também é amor, e o amor não tem qualquer cor. Outras pessoas podem nos discriminar, mas o que é mais importante é que não os discriminemos. Se não fazemos isso, somos uma pessoa mais feliz, e como uma pessoa mais feliz, estamos em uma posição de ajudar. E a raiva não é uma ajuda.

Bell Hooks: E para finalizar, e o medo? Porque eu acho que muitas pessoas brancas veem negros ou asiáticos não com ódio ou raiva, mas com medo. O que o amor pode fazer por esse medo?

Thich Nhat Hanh: O medo nasce da ignorância. Achamos que a outra pessoa está tentando tirar algo de nós. Mas se olharmos profundamente, vemos que esse desejo do outro é exatamente o nosso próprio desejo – ter paz, ser capaz de ter a chance de viver. Então se você percebe que a outra pessoa também é um ser humano, e que vocês têm o mesmo tipo de caminho espiritual, então os dois podem se tornar bons praticantes. Isso parece ser prático para ambos.

A única resposta para o medo é mais entendimento. E não há entendimento se não houver um esforço de olhar mais profundamente para ver o que está ali no nosso coração e no coração da outra pessoa. O Buda sempre nos lembra que nossas aflições, inclusive nosso medo e nosso desejo, nascem da nossa ignorância. É por isso que, para dissipar o medo, temos que remover percepções errôneas.

Bell Hooks: E se as pessoas perceberem isso corretamente e continuarem a agir injustamente?

Thich Nhat Hanh: Elas ainda não são capazes de aplicar suas percepções em suas vidas diárias. Elas precisam que comunidade as relembre. Às vezes você tem um lampejo de percepção, mas não é forte o suficiente para sobreviver. Portanto, na prática do budismo, samadhi (iluminação / liberação) é o poder de manter a inspiração viva o tempo todo, para que cada fala, cada palavra, cada ato, toque a natureza dessa inspiração. É uma questão de limpeza. E você limpa melhor se estiver rodeado pela sangha (grupo de praticantes do budismo) – aqueles que estão praticando exatamente o mesmo.

Bell Hooks: Acho que percebemos melhor o amor quando estamos em comunidade. Isso é algo que tive que trabalhar em mim mesma, porque a tradição intelectual do Ocidente é muito individualista. Não é baseada em comunidade. O intelectual é frequentemente imaginado como uma pessoa que é sozinha e à parte do mundo. Então tive que praticar estar disposta a deixar meu espaço de estudo para estar em comunidade, para trabalhar em comunidade, e para ser transformada pela comunidade.

Thich Nhat Hanh: Certo, e então aprendemos a operar como uma comunidade e não como indivíduos. Em Plum Village, é exatamente isso que tentamos fazer. Somos irmãos e irmãs morando juntos. Tentamos operar como células em um só corpo.

Bell Hooks: Creio que esse é o amor que procuramos no novo milênio, que é o amor experienciado em comunidade, além do indivíduo.

Thich Nhat Hanh: Então por favor, viva essa verdade e dissemine essa verdade com sua escrita, com sua fala. Isso será útil para manter esse tipo de visão e ação.

Bell Hooks: Obrigada pelo seu exemplo de coração aberto.

Thich Nhat Hanh: De nada. Obrigado.

Sobre Bell Hooks

Bell Hooks se descreve como uma mulher negra intelectual, ativista revolucionária. Uma crítica cultural e pensadora sobre questões como feminismo e raça, Bell Hooks publicou mais de vinte livros, incluindo All About Love: New Visions.

Tradução livre do artigo da revista Lion’s Roar: https://www.lionsroar.com/bell-hooks-and-thich-nhat-hanh-on-building-a-community-of-love/


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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