Os desafios para os Direitos Humanos em tempos de Pandemia

A Organização Mundial de Saúde – OMS declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto do novo coronavírus (COVID-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII. A seguir, 11 de março, declarou situação de pandemia da Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. De sua parte, o Ministério da Saúde, através da Portaria n° 356/GM/MS, na mesma data regulamentou e operacionalizou o disposto na Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da presente emergência de saúde pública e através da Portaria nº 454/GM/MS, de 20 de março do corrente ano, declarou, em todo o território nacional o estado de transmissão comunitária do novo coronavírus (Covid-19), adotando o isolamento domiciliar para as pessoas sintomáticas, bem como o distanciamento social para as pessoas com mais de sessenta anos, como a melhor e mais eficaz forma de conter a transmissibilidade da doença.

Indubitável que a situação de pandemia faz emergir uma grave crise sanitária, econômica e social de abrangência mundial, escancarando as diversas dimensões da desigualdade preexistente, constituindo-se um grande desafio assegurar direitos fundamentais frente a uma situação de emergência, em que ocorre supressão de liberdades, desemprego, diminuição dos espaços de poder e aumento da violência.

Toda a sociedade será atingida, mas os efeitos serão desiguais, pois certamente o impacto será muito maior nos grupos vulneráveis, como mulheres, negros, crianças, população LGBTI, dentre outros. Os mais excluídos, serão os primeiros e mais atingidos pelas desastrosas consequências da pandemia.

A preservação das garantias mínimas com vistas a resguardar a dignidade da pessoa humana se constitui em tema emergente, cabendo mais do que nunca, ao Direito, o papel regulatório preponderante diante dos desafios postos pelas áreas social, política e econômica no contexto de crise, o qual não pode ser substituído por qualquer outra instância ou poder.

Soma-se a tal situação, fragilidade das instituições democráticas, a não-consolidação de uma cultura de direitos humanos e as promessas normativas não cumpridas [2] .

Necessária se faz a ampliação dos espaços políticos para pensar a proteção social, a colaboração global e, sobretudo, a ampliação do conceito de direitos humanos, a fim de que abarque muito mais os direitos sociais.

Estes, por sua vez, não podem se restringir à dimensão biológica da saúde, que se constitui um direito fundamental, mas sim, ao seu conceito ampliado que, ao lado daquela dimensão, contempla também a sua vertente psicossocial, vale dizer, a pessoa entendida em sua integralidade. Nesse diapasão, impõe-se assegurar medidas voltadas à igualdade, à não- discriminação, e por que não dizer, ao direito à informação e à garantia do direito à subsistência e, em tempos de limitação dos espaços de trabalho, o desenvolvimento de um sistema de valoração deste, possibilitando o direito à vida e o exercício de muitos outros direitos, tais como o acesso à internet, a educação, a segurança pública, tornam-se medidas imprescindíveis.

Mais do que nunca é preciso falar em um mundo sustentável, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, elencados pela Agenda 2030, que em seu ODS n° 3, busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.

Constata-se que o princípio da interdependência dos direitos humanos se impõe de forma a assegurar o direito à vida e vida digna e para tanto, imperioso o acesso à saúde e ao trabalho, que se constituem em responsabilidade do Estado.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 4°, assegura o direito à vida e em seu artigo 26, impõe aos Estados signatários o compromisso de adotar providências no âmbito interno para progressivamente
conferir a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, por vias legislativas ou por outros meios apropriados.

Por sua vez, o artigo 27 da referida Convenção estabelece as hipóteses cuja ocorrência comporta a supressão de garantias, dentre estes, os casos de perigo público e de emergência que ameace a segurança do Estado Parte, conferindo a este o poder de suspender as obrigações contraídas em virtude da Convenção, desde que adequadas à situação e por tempo limitado, devendo ser estas compatíveis com as obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação baseada em quaisquer tipos de discriminação.

No Brasil, a própria Constituição Federal, em seu artigo 196, elenca a Saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Decreto Legislativo n° 06/2020 reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março 2020, cujos fundamentos decorrem da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ou seja, as medidas adotadas pelos Estados, em especial, pelo Estado brasileiro, encontram supedâneo legal, ainda que para se resguardar o direito à saúde, se restrinja outro direito também importante, a liberdade.

Entrementes, o isolamento social advindo da pandemia provoca uma realidade desruptiva, com consequências sociais que não podem ser desconsideradas, dentre elas, o aumento da violência de gênero e dos abusos sexuais, que no mais das vezes ocorre no âmbito familiar, expondo as mulheres e meninas à convivência estreita com seu agressor e/ou abusador, impedindo que estas saiam de casa para denunciar.

Lembre-se que a América Latina, incluindo o Brasil, já foi considerada o lugar mais perigoso para ser mulher, conforme a ONU [3]. Os dados revelam a gravidade da situação brasileira, persistente até 2019. De acordo com o Relatório Luz da Agenda 2030 elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil (2019), uma entre quatro mulheres sofreram algum tipo de violência em 2018, sendo que, em 76,4% dos casos, o agressor era conhecido da vítima. Ainda, em 2018 registrou-se 16.424 casos de estupro de crianças e adolescentes, sendo 86,6% dos casos contra meninas (14.217 vítimas); também foram notificados 781 casos de exploração sexual, sendo 85,5% das denúncias referentes a vítimas do gênero feminino [4].

Através dos dados do Atlas da Violência (2019), verifica-se que “houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007” [5].

Tal problemática é acentuada pelo alcoolismo, desemprego, filhos sem escola e sem acesso à educação e ainda, pelas dificuldades materiais e de subsistência.

Ainda, a atuação da rede de proteção à mulher fica comprometida em tempos de pandemia, requerendo criatividade no agir, a exemplo do Estado de São Paulo, que implementou o Boletim de Ocorrência virtual, medida que pode não ter tanta eficácia, dada a falta da democratização da internet.

A França estabeleceu um código de alerta nas farmácias, ao qual, serve de denúncia da violência de gênero, e que a vítima pode se valer da necessária ajuda.

É necessário ampliar a acolhida destas mulheres, vítimas de violência, muitas com filhos menores e das meninas, destinatárias maiores da violência sexual.

Ademais, é necessário considerar que a grande maioria das mulheres se constitui como “cuidadoras”, ou seja, são a grande maioria de trabalhadores na área da saúde e são as que são responsáveis pelos doentes da família, das pessoas com deficiência, são as que são submetidas ao trabalho doméstico, seja em suas casas, ou nas casas de seus patrões.

Em tempos de pandemia, o aumento dos casos de violência de gênero contra a mulher tende a se acentuar ainda mais, colocando em risco mulheres e meninas, em situação de vulnerabilidade social e econômica.

Recentemente, a ONUMULHERES recomendou que os países atentem-se às necessidades femininas em tempos de Pandemia. Recordando-se que as mulheres constituem 70% daqueles que trabalham no setor social e de saúde, responsáveis, em sua maioria, pelos cuidados não-remunerados em casa, a ONUMULHERES registrou o contexto de risco e vulnerabilidade que estas se encontram na atuação situação global [6].

A pandemia terá o efeito de intensificar o nacionalismo e a xenofobia com o fechamento das fronteiras, em que o estrangeiro passa a ser visto como uma ameaça, o “inimigo”, aquele que traz a doença e a ideia vigente de proteção aos seus, aos “iguais”, neste sentido, um aumento maior da discriminação e da vulnerabilidade dos imigrantes e, ainda, da prevalência dos interesses dos países ricos, a exemplo do ocorrido há pouco, de disputa global por equipamentos médicos opondo os EUA, Europa e os países pobres, com reconhecida dificuldade para a África, Ásia e América Latina para acesso a equipamentos médicos escassos, tais como máscaras e reagentes para testes e combate ao coronavírus [7].

O racismo estrutural [8] tende a se agravar como consequência do estado de emergência resultando em maior exposição da população negra, dificultando o acesso desta ao trabalho e aos direitos sociais básicos, situação partilhada também pelo segmento trans, acentuada tal situação serem excluídas da seguridade social e do mercado de trabalho formal, muitas expostas à prostituição, invisibilizadas socialmente e carecendo de medidas inclusivas.

O direito à educação também fica restringido, haja vista que a tecnologia ainda não se constitui um direito de todos, sendo inacessível a educação digital a grande parte da população brasileira, que não possuem sequer saneamento básico.

Registre-se que, de acordo com o Relatório Luz 2019, o acesso à tecnologias, em especial à internet, no Brasil, tem crescido, atingindo 60,8% das residências em 2017, no entanto, com desempenho abaixo do esperado, cuja cobertura é, inclusive, inferior àquela existente em países vizinhos. Quanto ao número de usuários de computadores, este permaneceu na faixa dos 46%, dos últimos anos [9].

A crise proporcionada pela Covid-19 evidencia a precarização das políticas públicas que torna mais vulnerável a população carente, as desigualdades presentes no mercado de trabalho, na educação e na saúde, mostrando a ausência do Estado na dimensão dos direitos sociais e econômicos, podendo vir a se constituir em mais desigualdade.

Necessária se faz a adoção de providências imediatas tais como o acesso à medicina básica, fortalecimento do SUS e do Programa de Saúde da Família, valorização das equipes multiprofissionais de saúde (médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem), bem como, maior investimento em ciência, pesquisa, saneamento básico, saúde pública, às medidas preventivas, cuidados paliativos e direito ao cuidado para as pessoas que cuidam.

Importante também a ampliação dos espaços políticos para que se pense a proteção social, com investimentos reais no campo social, a colaboração global e, repita-se, a garantia dos direitos fundamentais na vigência de situações de emergência.

Além de todas as dificuldades pontuadas, o maior desafio em tempos de pandemia é fazer que ela possa se constituir em preâmbulo para uma transformação mais profunda do modelo civilizatório, de modo a estruturar um mundo mais justo e igualitário, com a erupção de um movimento afirmativo, capaz de comportar maior participação social de forma a melhor resguardar os direitos humanos, em uma sociedade na qual a economia viabilize o direito à vida.

 

 


1- Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP; Especialista em Direito Civil, com concentração em Direitos Difusos e Coletivos, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Procuradora de Justiça do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul, titular da 1º Procuradoria de Justiça Criminal; Diretora-Geral da Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul

2- BITTAR. Eduardo C. B. Democracia, Justiça e Direitos Humanos: Estudos de Teoria Crítica e Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 18.

3- ONU. Região da América Latina e do Caribe é a mais violenta do mundo para as mulheres, diz ONU. Publicado em: 22 nov. 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/regiao-da-america-latina-e-do-caribe-e-a-mais-violenta-do-mundo-para-as-mulheres-diz-onu/. Acesso em: 13 abr. 2020.

4- GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A AGENDA 2030. III Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Brasil: 2019. Disponível em: https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2019/. Acesso em: 13 abr. 2020. 

5- IPEA. Atlas da Violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2019. p. 35. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em 13 abr. 2020. 

6- ONUMULHERES. Prestar atenção às necessidades e liderança das mulheres fortalecerá a resposta ao COVID-19, diz escritório global da ONU Mulheres. Publicado em: 19 mar. 2020. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/noticias/prestar-atencao-as-necessidades-e-lideranca-das-mulheres-fortalecera-a-resposta-ao-covid-19-diz-escritorio-global-da-onu-mulheres/. Acesso em: 14. Abr. 2020. 

7- FOLHA DE SÃO PAULO. Disputa por equipamentos médicos opõe EUA e Europa a países pobres. São Paulo: Grupo Folha. Publicado em: 10 abr. 2020. Acesso em: 10 abr. 2020. 

8- “Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia e nem um desarranjo institucional”. ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. RIBEIRO, Djamila (Coord.). Coleção Feminismos Plurais. 2ª Reimpressão. São Paulo: Pólen, 2019. p. 50. 

9- GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A AGENDA 2030. III Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Brasil: 2019. p. 46. Disponível em: https://gtagenda2030.org.br/relatorio-luz/relatorio-luz-2019/. Acesso em: 13 abr. 2020


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