Reflexões sobre o COVID-19 e a Realidade nas Favelas Brasileiras

Estamos vivendo atualmente uma pandemia causada pelo COVID-19, que tem interferido diretamente no modo de vida da população mundial, somos orientados a adotar as medidas preventivas recomendadas pela OMS, como forma de reduzir o contágio, diante deste cenário precisamos pensar qual é a realidade das comunidades periféricas neste momento de crise.

É nítido que sempre existiu uma negligência histórica por parte do Estado nas favelas brasileiras. Serviços públicos básicos não chegam, e isso, se amplifica ainda mais em momentos de crise, como a que estamos vivenciando atualmente. A pandemia causada pelo COVID-19 tem gerado um agravamento de uma crise já existente, em que suas consequências refletem diretamente nas áreas sócias, políticas e econômicas. 

Este é o cenário perfeito para proliferação do coronavírus que vem causando muita preocupação nessas comunidades. Fique em casa, evite aglomeração de pessoas, lave bem as mãos com água e sabão, várias vezes ao longo do dia, é o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda para reduzir os impactos da pandemia do novo coronavírus no mundo todo.

Mas como isso é possível em um país de severas desigualdades sociais como o Brasil? Como lavar as mãos se não tem água? Como ficar em home office se faltam empregos formais, mesmo antes da pandemia, e a grande parcela da população são trabalhadores autônomos e não possuem recursos financeiros para garantir o seu sustento nesse período? Neste texto faremos uma breve reflexão acerca dos obstáculos enfrentados pela população que vivem nas favelas brasileiras nesses tempos de pandemia do novo coronavírus.

Lavar as mãos pode parecer algo simples de fazer, mais nas favelas brasileiras nem sempre isso é possível. Nessas regiões o vírus encontra condições ideais para se propagar de forma ainda mais rápida, além disso, a alta incidência de tuberculose e pneumonia nas comunidades pode favorecer o desenvolvimento da forma mais grave do COVID-19.

De acordo com os dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coletados durante o Censo de 2010, mais de 11,4 milhões de pessoas vivem em comunidades carentes, sabe-se que hoje esse número é muito maior, de acordo com dados não oficiais mais de 13 milhões de pessoas vivem em favelas hoje no Brasil.

Ainda segundo o IBGE (2010) mais de trinta milhões de pessoas não tem acesso à água encanada e mais de 11 milhões de brasileiros vivem em casas de um único cômodo com três ou mais moradores, como manter o isolamento social no caso de ter se contaminado com o vírus? Como se manter em casa quando isso significa não ter recursos financeiros básicos para o sustento da família?

Quando falamos em favelas e pobreza no Brasil, sabemos que ela tem cor, pois a grande maioria da população é negra. Segundo o Censo de 2010 o numero total de brasileiros era mais de 190 milhões. E no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2016 o numero de pessoas que se autodeclararam negras correspondia a 51% da população brasileira, ou seja, mais da metade da população é negra. O número de negros aumentou, pois ultimamente mais pessoas estão se reconhecendo como negros. Salientamos que para o IBGE a categoria negros corresponde aos pretos e pardos.

Sendo 51% da população composta por negros no país, se considerarmos os 10% mais pobres a população de negros salta para 78,5%, ou seja, dos 10% mais pobres a grande maioria corresponde aos pretos e pardos. Quando pensamos nos 10% mais ricos a situação se inverte, aproximadamente 20% são pretos e pardos (IBGE, 2016). Diante desses dados não podemos pensar que esta é uma situação normal, ela traz consigo todo o processo de escravidão sofrido pelos negros na história.

Hoje quando avaliamos os dados do IBGE verificamos que os negros continuam em desvantagens em relações aos brancos, isto é, antes não havia igualdade e democracia racial e ainda hoje não há, e se somos um país democrático algo deve ser feito, não dá para aceitar esse tipo de injustiça.

O ponto em questão aqui é que o problema da grave desigualdade social existente no Brasil é histórica, muita gente morando em um mesmo espaço, sem saneamento básico, sem água, sem recursos para comprar sabão ou álcool em gel. O coronavírus vem dizer que com a falta de investimento para mudar esta realidade, o vírus pode se espalhar rapidamente, e sabe-se que os impactos desta nova crise causada pelo vírus afetarão com maior gravidade os mais pobres.

Nas favelas as ruas são estreitas, as casas são construídas umas sobre as outras, lugar com altas concentrações de pessoas por metro quadrado, milhões de brasileiros vivem em favelas e comunidades carentes (Campello et al, 2018), muitas famílias tiveram a renda familiar reduzida com o início do isolamento social, nesse cenário as ações de controle da disseminação do novo coronavírus se torna um desafio ainda maior a se vencer.

Faltam recursos para a compra de produtos de higiene, água para lavar as mãos e espaço para o isolamento social, fica evidente que interromper o convívio social é uma questão de saúde pública, por outro lado o aspecto socioeconômico compromete o confinamento domiciliar, há casa com apenas um cômodo e vários moradores, e às vezes até sem banheiro, “Uma parcela expressiva da população vem vivendo à margem de condições mínimas de vida” (Campello et al, 2018, p. 56). Se há suspeita ou diagnóstico da doença, cumprir a quarentena sem contacto com outras pessoas é quase impossível, e neste sentido, o risco de transmissão do COVID-19 aumenta exponencialmente.

Outro dado preocupante é o número de idosos que vivem nas comunidades, eles são o grupo mais suscetível a infecção pelo vírus e de acordo com o IBGE de 2016 os idosos representam 16% da população nas favelas, e há favelas que lideram os índices de tuberculose no Brasil, um problema de saúde que somado ao coronavírus aumenta surpreendentemente a mortalidade pelo vírus.

Uma saída a essa situação da população mais vulnerável seria criar com maior força uma rede de solidariedade, mas somente isso não é suficiente para conter esses impactos, então é preciso encarar esta situação como um fenômeno que exige do Estado e da sociedade uma mudança radical dos rumos que se vinham tomando em termos de políticas públicas para s favelas brasileiras, em especial as políticas sociais, econômicas e de saúde.

Essa pandemia se coloca no Brasil como um grande desafio, hoje se tem mais de 60.000 casos confirmados, e mais de 4.000 óbitos, e os números só aumentam, já se pode dizer que a situação está nacionalizada, porque vários estados brasileiros já tem casos confirmados o que exige dos governantes uma ação rápida para enfrentar essa pandemia.

Estamos em meio a uma pandemia de proporção global, onde não sabemos ao certo quanto tempo poderá durar. A OMS pede que haja uma mudança nos nossos hábitos, que reforcemos os nossos cuidados com a higiene e que nos mantenhamos em distanciamento social num esforço coletivo de conter um vírus que já provocou milhares de mortes pelo mundo.

O governo é obrigado a intervir, e tomar medidas de combate à pandemia, mas as medidas tomadas não estão sendo suficientes para conter o avanço do vírus, já que eles consideravam na época do surgimento dos primeiros casos, medidas como o isolamento social, ineficazes. Vivenciamos hoje um rápido avanço do contágio, essas medidas essenciais chegaram tarde demais. As respostas do Estado em tomar medidas preventivas falharam, causando consequências demográficas, econômicas e sociais. Levando a população a um cenário de caos e pânico por todo o país.

Sendo o Brasil um país de contrastes, a batalha contra o COVID-19 será penosa. E terá consequências ainda maiores nas favelas, onde o isolamento torna-se praticamente impossível, se tornando um prenúncio de uma tragédia. A situação real é de abandono, e a ameaça constante é uma realidade inquietante.

 

Referências bibliográficas

CAMPELLO, Tereza et al. Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saúde em Debate [online]. 2018, v. 42, n. spe3, pp. 54-66. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-11042018S305>. ISSN 2358-2898. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S305.

CENSO DEMOGRÁFICO (2010). Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais : uma análise das condições de vida da população brasileira : 2016 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro : IBGE, 2016 146 p. – (Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, ISSN 1516-3296 ; n. 36). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98965.pdf


1 Milena de Souza Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Algarve (Portugal), Especialista em Micropolítica da Gestão e Trabalho na Saúde pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Bacharela em Serviço Social pelo Centro Universitário Dom Pedro II.
2 Jadson Lima Santos é Artista Visual, e tem centrado suas pesquisas nas áreas da Antropologia da Imagem, com recente trabalho apresentado no edital “Arte Todo Dia“ da Fundação Gregório de Matos, no Festival Beirú das Artes Negras, Graduado em Design de Moda pela Universidade Salvador (UNIFACS).

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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