Conversamos com a autora independente Jarid Arraes

A cordelista estará na Feira Plana, que começa hoje, em São Paulo

Por Mariana Rudzinski no Elle

Em seu sexto ano, a Plana Festival Internacional de Publicações começa hoje e vai até domingo (25) na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A agenda desta edição, que propõe como tema o retorno ao nada, inclui várias atividades centradas no trabalho de mulheres. Entre os painéis gratuitos, está uma mesa com o grupo feminista Slam das Minas, que comemora uma década desse tipo de campeonato de poesia no país. A filósofa e colunista de ELLE, Djamila Ribeiro, compõe o painel “crítica da razão negra” ao lado do filósofo e advogado Silvio Almeida. Outra mesa imperdível é uma sobre os caminhos e oportunidades da escrita negra, com as escritoras Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro e Jarid Arraes. Cearense baseada em São Paulo, Jarid, 27 anos, é uma cordelista e feministacom dois livros publicados (o terceiro será lançado em julho). Em suas obras, ela trata de temas como misoginia, racismo e direitos LGBT. Confira a conversa que a autora teve com ELLE.

Como você se descobriu escritora?

Comecei a escrever muito cedo. Meu pai e meu avô são cordelistas, e a literatura sempre fez parte da minha vida. Mas foi somente quando comecei a compreender questões políticas e sociais, como o machismo e o racismo, que eu pude me entender como alguém que queria escrever e que poderia, sim, ser escritora.

Sou do interior do Ceará, mais especificamente da região do Cariri, mas me mudei para São Paulo porque era praticamente impossível ser incluída e vista como escritora se eu continuasse lá. Tudo gira em torno do Sudeste, o que é muito refletido em oportunidades de publicação, de trabalho. Isso faz parte de tudo que estou sempre abordando e propondo como discussão dentro da literatura.

Por que você optou pelo formato do cordel?

Foi uma escolha bastante política. É inevitável perceber que o cordel sempre esteve em uma posição colocada como inferior, quase como se não fosse literatura de verdade. Não vemos cordelistas em posição de igualdade com autores de outros estilos literários, menos ainda se forem mulheres. Eu quis valorizar o cordel, mas também trazer novos temas a ele. Sempre me incomodou a insistência em histórias que trazem mulheres, pessoas negras, gays e travestis como personagens estereotipados.

Quando escrevo cordel estou intencionalmente criando um conteúdo que sei que pode ser utilizado em escolas. Acho que o cordel tem esse potencial. O cordel tem essa beleza de ser lido em grupo, de ser bastante musical. Minha ideia era trazer a tradição da forma, da métrica, da rima e do ritmo, mas discutindo temas importantes.

Seu primeiro livro, “As Lendas de Dandara”, de 2015, não é em cordel, mas em prosa. Como foi escrevê-lo?

Queria contar uma história que precisava ser conhecida. A ideia do livro veio quando escrevi um artigo no dia da Consciência Negra questionando se as pessoas sabiam quem tinha sido Dandara e recebi uma chuva de comentários odiosos. Entre vários, um deles dizia que Dandara era só uma lenda. Pensei que já que ela era só uma lenda, eu iria escrever essa lenda, porque nem isso tínhamos sobre ela. Então peguei o pouco de informação disponível e preenchi as muitas lacunas com ficção.

Escolhi Dandara porque Zumbi dos Palmares é um símbolo para o movimento negro e para a luta contra o racismo, mas pouco se falava a respeito de Dandara, sua companheira. Escrever essa história foi um processo de encontro com minhas raízes. Eu estava tão habituada a escrever com métrica e rima que foi um desafio escrever em prosa e ainda por cima dar esse tom de lenda. Mas foi uma experiência extraordinária.

No ano passado, você publicou “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis”, composto por cordéis postados em seu blog. Me conta um pouco mais sobre isso?

Ele nasceu de uma necessidade minha em encontrar mulheres negras que tivessem marcado a história do Brasil. Eu não tinha conhecido nenhuma na escola, mas sabia que elas existiam. A busca que começou pessoal se tornou coletiva, porque eu sabia que, assim como eu, muitas outras pessoas também precisavam delas. Escrevi em forma de cordel as histórias que descobri, pensando em torná-las poéticas e compartilháveis.

Felizmente, meus cordéis sempre foram muito bem recebidos, utilizados em escolas. Em 2017, o “Heroínas Negras Brasileiras” foi indicado em várias listas de melhores livros do ano e hoje já vai para 10 mil exemplares rodando o Brasil. Para mim é uma conquista incrível e gigantesca. Pelo cordel, que merece valorização e deve estar junto de todos os outros estilos literários, e também pela temática dele, que é de resistência.

(Guilherme Vieira/Divulgação)

E as heroínas que entraram para o livro, como foram escolhidas?

Selecionamos as heroínas pensando em uma diversidade de períodos históricos – desde aquelas que lutaram contra a escravidão até as mais recentes -, mas também considerando uma diversidade de regiões do Brasil: no livro temos heroínas de vários estados diferentes. Essas heroínas do livro foram mulheres que, diante das dificuldades extremas, agiram impulsionadas por uma coragem que tornou nosso presente possível.

De que forma o feminismo influencia seu trabalho?

O feminismo foi fundamental para que eu me sentisse segura para escrever e publicar o que eu escrevia, principalmente o feminismo negro. Na escola, pouquíssimas autoras mulheres tinham sido apresentadas – sendo que nenhuma delas era negra -, e isso era reflexo do machismo e do racismo, que também estão presentes no mercado editorial, nas livrarias, nas premiações literárias. Pouco a pouco, fui descobrindo escritoras negras e, com elas, percebi que escrever era também uma afirmação política, uma questão de representatividade, um posicionamento.

Eu faço o exercício constante de ler livros escritos por mulheres. Para ler autoras negras, é preciso procurar ativamente. Quando uma grande editora ativou recentemente um selo que se apresenta como feminino e todas as faces nele foram de mulheres brancas, isso foi aceito como normal, e pior, sob o discurso feminista, de diversidade. É terrível.

Quem  são as mulheres que te inspiram?

As nossas heroínas negras me inspiram tanto. As heroínas do passado, que foram as pioneiras, que deram sua vida: Tereza de Bengala, Maria Firmina dos Reis, que me faz uma escritora melhor todos os dias, e as heroínas do presente: Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Cidinha da Silva, Jurema Werneck, Karla Alves, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Mel Duarte, Ryane Leão, Elizandra Souza, Lívia Natália, Débora Maria da Silva, Cristiane Sobral, Jaqueline Gomes de Jesus. Jamais conseguiria citar todas, mas cada uma traz uma multidão junto de si

Por causa delas hoje sou escritora. Por causa delas hoje eu voto. E eu sei que, por causa das mulheres que citei, por causa da luta que lutamos agora, o mundo estará um pouco mais possível para as próximas. É isso que me chama atenção: elas nos encorajaram a fazer um mundo possível para as próximas heroínas que virão. Elas nos encorajam ao heroísmo também.

O que você está preparando para a mesa em que participará nesta edição da Plana?

Quero discutir quais são, de fato, as perspectivas que temos, enquanto autoras negras, no mercado editorial agora. Há muito oportunismo do mercado, mas o que está mudando de verdade para as escritoras negras?

A Miriam Alves, que estará no painel, e a Esmeralda Ribeiro, que fará a mediação, são grandes referências para mim. Quando eu buscava por escritoras negras, elas foram algumas das primeiras que encontrei. É muito emocionante dividir um painel com elas. São gerações diferentes, mas com tanto em comum. Sei que vou aprender muito. Será um privilégio.

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