Copa do Mundo de 2018 coloca racismo, machismo e homofobia em evidência

Nunca antes um mundial expôs tanto pautas de raça, gênero e orientação sexual como a Copa do Mundo da Rússia. Boa notícia é que o holofote nas opressões gerou reações

Por Ivan Longo Do Revista Fórum

Foto: The Hidden Flag/Reprodução

A capacidade de um esporte de massas de funcionar como um espelho da sociedade foi, mais uma vez, comprovada na Copa do Mundo da Rússia. Nem só de futebol se faz uma Copa, mas de tudo que acontece ao longo de um mês de competições que envolvem culturas, países e realidades diferentes em um só lugar.

O poder de exposição e mobilização da internet e das redes sociais, que só aumenta ano a ano, trouxe a este mundial, no entanto, um ingrediente a mais. Episódios de racismo, homofobia e machismo que são tão presentes no mundo do futebol, mas por vezes invisibilizados, não passaram despercebidos ao longo deste mês que o mundo voltou a sua atenção para o que estava acontecendo na Rússia.

A boa notícia é que todas as formas de opressão que foram constatadas nesta Copa do Mundo ganharam holofote, nas redes e nas mídias, e geraram diferentes debates e reações que muito provavelmente servirão de alerta para outras competições de tamanha importância.

Relembre, abaixo, alguns fatos e episódios ligados a opressões de gênero, raça e orientação sexual que ficaram em evidência neste mundial e suas respectivas reações.

Homofobia: leis contra LGBTs na Rússia

Antes mesmo do início da Copa do Mundo já havia se formado um debate, na maior parte dos países que participaram da competição, sobre as leis que proíbem as manifestações de afeto públicas de LGBTs na Rússia. No país governado por Vladimir Putin a homossexualidade não é proibida na legislação, mas desde 2013 vigora uma lei que proíbe a “propaganda LGBT”, isto é, as manifestações públicas de carinho, como beijar, trocar carícias ou andar de mãos dadas, e ativismo, como paradas gays, protestos, etc. Havia temor de que turistas desavisados tivessem problemas com a lei no país considerado not friendly para homossexuais. Felizmente, não foi registrado nenhum caso de intolerância contra este público durante a Copa, mas só a existência das leis que criminalizam LGBTs no país sede do mundial gerou algumas reações interessantes.

Reações

A primeira reação positiva com relação a esta forma de opressão partiu do próprio governo russo, pouco antes do início da Copa. A Fifa anunciou que a Rússia, excepcionalmente no mundial, não proibiria bandeiras LGBTs e manifestações em prol da causa.

Mesmo assim, inúmeros países divulgaram alertas à população que iria assistir à Copa do Mundo in loco. Um deles foi o Brasil que, através do Itamaraty, publicou o Guia do Torcedor Brasileiro.

“Não são comuns na Rússia manifestações intensas de afeto em público. Em particular, recomenda-se à comunidade LGBT evitar demonstrações homoafetivas em ambientes públicos, que podem ser consideradas ‘propagandas de relações sexuais não tradicionais feita a menores’ e enquadradas em lei que prevê deportação”, diz um trecho do guia.

Já o canal de TV argentino Tyc Sports resolveu confrontar o governo russo com uma campanha satírica. Com um vídeo intitulado ‘Putin’, a emissora apresentou cenas que mostram a paixão do argentino pelo futebol e como pessoas do mesmo sexo podem demonstrar afeto um ao outro. São imagens de comemorações exaltadas de jogadores se abraçando, torcedores fora de si invadindo o campo completamente nus, entre outras.

“Senhor Putin, ficamos sabendo que o seu país não admite manifestações de amor entre os homens. Estamos com problemas!”, diz um narrador no início do vídeo. A TV acabou retirando o comercial do ar após pressão da Rússia e da comunidade LGBT. Os russos enviaram uma carta à embaixada argentina. Já alguns grupos criticaram o vídeo por estigmatizar alguns comportamentos como se abraçar. Assista abaixo.

Outra reação com relação à opressão do governo russo foi a criação, por parte da comunidade internacional LGBT, do #RainbowCup que, em português, significa “Copa do arco-íris”, em referência à bandeira LGBT. Trata-se de uma campanha que, se aproveitando da exceção para manifestações de homossexuais no mundial, incentiva o público LGBT a levar a bandeira do arco-íris aos estádios e ruas da Rússia e postar nas redes sociais com a tag #RainbowCup.

Confira, abaixo, o vídeo da campanha.

Together we can create The Rainbow Cup against prejudice 🏳️‍🌈 Join us with your proud stories! #rainbowcup

Uma publicação compartilhada por Rainbow Cup (@the_rainbow_cup) em

As reações do público LGBT diante das leis russas não pararam por aí. A Federação Estatal de Lésbicas, Gays, Trans e Bissexuais (FELGTB) da Espanha organizou, ao longo da Copa do Mundo, um “protesto disfarçado” em que torcedores caminhavam juntos pelas ruas do país sede do mundial com camisetas de seleções que, juntas, formavam as cores da bandeira LGBT. A manifestação inusitada foi batizada de “The Hidden Flag” (em português, “a bandeira escondida”).

Machismo, misoginia e assédio

Não foram poucos os casos registrados de machismo, misoginia e assédio nesta Copa do Mundo da Rússia. Torcedores de diferentes nacionalidades protagonizaram episódios lamentáveis contra mulheres.

O caso mais notório, que ganhou repercussão mundial, foi a “brincadeira” de um grupo de torcedores brasileiros com uma mulher russa. Se aproveitando da falta de conhecimento da mulher com o português, os homens gravaram um vídeo em que faziam ela repetir frases de cunho sexual e misógino. Foi o famoso caso da “b***ta rosa”.

Casos parecidos também foram protagonizados por torcedores de outras nacionalidades. Um vídeo que também viralizou nas redes sociais, por exemplo, mostra um torcedor argentino proferindo palavras obscenas à uma jovem russa menor de idade.

Também foram alvo do machismo repórteres mulheres de diferentes países, incluindo o Brasil. Foram dezenas de casos em que jornalistas, cobrindo jogos nos estádios ou fazendo gravações e passagens pelas ruas da Rússia sofreram assédio de torcedores que tentavam beijá-las a forças, tocá-las e apalpá-las.

Reações

Na carona do movimento #MeToo e de outras campanhas globais de denúncia de assédio, os casos de machismo e misoginia não passaram em branco na Copa do Mundo da Rússia. Nas redes sociais e na imprensa mundial os episódios foram superexplorados e geraram reações concretas.

Para se ter uma ideia, os torcedores brasileiros que aparecem no vídeo induzindo a mulher russa a falar palavras de cunho sexual estão sendo investigados ou punidos em diferentes esferas. Um dos torcedores que protagonizaram a cena, por exemplo, é o advogado Diogo Valença Jatobá que, por conta de sua atitude, se tornou alvo de uma apuração de conduta por parte da Ordem dos Advogados do Brasil de Pernambuco (OAB-PE). A investigação pode levar a uma advertência ou até a cassação da carteira de advogado. Em nota, a OAB afirmou que “a preconceituosa atitude é causa de vergonha para todos nós, brasileiros, e vai na contramão do atual contexto de luta contra a desigualdade de gênero”. Outro torcedor que aparece nas imagens foi demitido da empresa em que trabalhava.

Os torcedores brasileiros se tornaram, ainda, alvo de uma denúncia na Justiça russa, feita por uma advogada local, por violência e humilhação pública à honra e à dignidade de outra pessoa. Se a denúncia for aceita, os brasileiros podem responder criminalmente no país sede da Copa do Mundo.

Este caso, inclusive, gerou uma reação até mesmo do escritório das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres). “É inaceitável a intenção deliberada de alguns torcedores brasileiros de assediar sexualmente mulheres durante a Copa do Mundo, valendo-se de constrangimento, engano, e assim violando os direitos humanos das mulheres”, criticou a representante da ONU Mulheres, Nadine Gasman.

Já o torcedor argentino que proferiu palavras obscenas à uma jovem russa menor de idade, identificado como Fernando Penovi, foi proibido de entrar nos estádios durante o mundial a pedido do diretor de segurança de eventos futebolísticos da Argentina, Guilhermo Madero.

Racismo

Outra opressão presente nesta Copa do Mundo foi o racismo, registrado em alguns casos por parte de torcedores presentes no mundial ou internautas que acompanhavam os jogos pelas redes.

Um dos casos mais notórios, novamente, foi protagonizado por um brasileiro. Acompanhando um jogo da França, o youtuber Júlio Cocielo, que tem milhões de seguidores nas redes, publicou a seguinte frase no Twitter: “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia, hein”, em referência ao craque francês com ascendência africana.

A frase foi interpretada por muitos como racista, já que o youtuber, ao tentar “elogiar” a velocidade com que corre um jogador negro, o associou à criminalidade.

Também ganhou destaque nesta Copa do Mundo um caso que aconteceu com a seleção sueca. O jogador Jimmy Durmaz nasceu na Suécia em uma família cristã de ascendência síria vinda da Turquia de origem imigrante. Após cometer a falta que resultou no gol da virada da Alemanha na partida em que sua seleção foi eliminada, passou a ser alvo de insultos racistas no estádio, por parte de torcedores, e nas redes sociais.

Reações

A repercussão do caso do youtuber brasileiro foi tamanha que Júlio Cocielo teve que se explicar e, na primeira tentativa, afirmou que não foi racista, que apenas elogiava a velocidade do jogador. Internautas, então, começaram a vasculhar seu Twitter e encontraram inúmeras outras manifestações racistas do youtuber. Resultado: ele apagou todos os tuítes, fez um contundente pedido de desculpas e, ainda assim, perdeu contratos publicitários e patrocínios.

Já no caso do racismo e xenofobia com o jogador sueco, outros atletas da seleção se uniram para gravar um vídeo de apoio – que viralizou nas redes – onde dizem em uníssono “Foda-se o racismo!”.

“Sou um jogador de alto nível, receber críticas faz parte da nossa vida; mas ser chamado de ‘imigrante maldito’ e ‘homem-bomba’ é completamente inaceitável”, afirmou Jimmy Durmaz, que passou a receber uma onda de apoio nas redes sociais.

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