Negros e mulheres enfrentam as maiores taxas de desemprego
Por Flávia Oliveira, Do O Globo
Na derradeira aglomeração, antes de o coronavírus se impor como ameaça Brasil afora, estive com Nikole Hannah-Jones, jornalista negra que coordenou o Projeto 1619 do “New York Times”. A convite do IMS-SP, participamos no Festival Serrote da mesa em que ela relatou a experiência de contar a História dos EUA, a partir da chegada do primeiro navio com africanos escravizados, há 401 anos, em vez da versão que parte da Declaração de Independência, de 1776. No Brasil, o historiador Luiz Felipe de Alencastro identificou o primeiro desembarque de cativos em 1550, em Pernambuco; com o tráfico negreiro se estendendo até os anos 1850. Nos dois países, séculos de escravidão legaram aos afrodescendentes condições precárias de trabalho, habitação, níveis de renda e bem-estar. Era assim pré-pandemia; pós, assim será.
A última pergunta a Nikole foi sobre os efeitos na população negra americana da temporada de enfrentamento à Covid-19. “Não tenho ideia de qual será o impacto total, mas é algo previsível. Seremos os mais afetados, porque não há rede de proteção para quem não consegue ir ao trabalho; não tem creche, quando escolas fecham; perdem receitas, quando têm de cuidar de um ente amado. Ficará exposto como negros e negras, que mal estão se segurando no momento, serão empurrados abismo abaixo. As consequências vão ser mais devastadoras para eles”, sentenciou.
Três semanas depois, a primeira leva de estatísticas sobre a pandemia nos EUA, segundo o “NYT”, mostrou que no estado da Louisiana sete em cada dez mortos pela Covid-19 eram negros. Em Chicago (Illinois), afro-americanos compõem um terço da população, mas correspondiam a 72% dos óbitos. É desfecho que espreita o Brasil. Com o agravante de uma população muito mais numerosa, perto de 56% do total de habitantes.
Lá como cá, as estatísticas sobre incidência da pandemia por cor ou raça são deficientes. No Brasil, contaminações leves ou assintomáticas mal foram detectadas; faltam testes. Nas fichas de comunicação obrigatória dos casos graves, a informação sobre etnia é quase sempre negligenciada. Isso, até agora, inviabilizou a produção de dados sobre o perfil racial dos doentes por Ministério da Saúde, governos estaduais e prefeituras. Não à toa, a Coalização Negra por Direitos reivindicou em documento assinado por 150 organizações a apresentação dos recortes racial e de gênero. Pleito semelhante fez a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em relatório com uma dúzia de recomendações para o enfrentamento à pandemia.
A crise atual tem cor e gênero. É negra e feminina. A Covid-19 aportou no Brasil pelos corpos de maior renda e pele mais clara, retrato da elite de uma sociedade assentada no racismo e profundamente desigual. A doença, que em pouco mais de um mês alcançou quase 18 mil brasileiros e beira mil mortes, está se espalhando por periferias e favelas, habitadas predominantemente por famílias negras. Na cidade do Rio, dez comunidades são classificadas formalmente como bairros pela prefeitura; até anteontem, quatro delas (Rocinha, Vigário Geral, Manguinhos e Maré) registravam seis dos 73 óbitos confirmados.
A doença e a morte ameaçam os grupos populacionais que agregam variáveis de pobreza multidimensional. Faz tempo que organismos multilaterais elencam, além da falta de dinheiro, outras características que tornam uma família vulnerável: residências com mais de três moradores por cômodo, pouca ventilação, paredes e cobertura frágeis; falta de saneamento básico; baixa escolaridade; rede de proteção social insuficiente; dificuldade de acesso à internet.
São aspectos que, no Brasil, alcançam principalmente negros, mulheres, idosos pobres, nordestinos. Na Síntese de Indicadores Sociais 2018, o IBGE estimou que 15,5% dos negros moravam em residências com pelo menos uma inadequação, de ausência de banheiro a ônus excessivo com aluguel. No Nordeste, 30,8% dos moradores não tinham acesso à internet fixa ou móvel. É essa gente que, sem trabalho, terá de se habilitar por aplicativo de celular ou computador ao auxílio emergencial de R$ 600 que a União vai pagar por três meses.
Negros e mulheres enfrentam as maiores taxas de desemprego. No fim do ano passado, estavam desocupados 13,5% dos pretos, contra 8,7% dos autodeclarados brancos; 13,2% delas, 9,2% deles. São também maioria entre trabalhadores domésticos, empregados sem carteira assinada, conta própria sem CNPJ. Formalizados, ocupam majoritariamente as posições sujeitas às demissões ou aos acordos de redução de salário e jornada, suspensão de contratos nos moldes da Medida Provisória 936, da precarização. Em pesquisa do ID_Br, 79% das empreendedoras negras disseram não ter reservas para enfrentar a temporada de isolamento social. São os rostos de uma crise dramática, quando não letal.