Cubana Teresa Cárdenas elogia visibilidade dos negros e mulheres na Flip

Escritora afirmou que racismo também desafia Cuba, lembrando que seu país e o Brasil foram os últimos da América a libertar os escravizados

Foi com o samba “Luz do repente”, de Jovelina Pérola Negra, que a pesquisadora Ludmilla Lis abriu a primeira mesa do último dia da Flip de 2022, no domingo (27/11). Com o público em pé, ela puxou um coro do refrão “Deixa comigo/ Eu seguro o pagode e não deixo cair/ É, é/ Sem vacilar/ É, é/ Sem me exibir/ É, é/ Só vim mostrar/ É, é/ O que aprendi”.

Depois de ensaiarem uma dança, a escritora cubana Teresa Cárdenas e a poeta pernambucana Cida Pedrosa se sentaram para falar sobre o feminino, ancestralidade e racismo numa das mesas mais emocionantes da programação.

“A Flip teve essa magnífica ideia de nos fazer visíveis”, disse Cárdenas. “Demorou, mas aconteceu. Estamos aqui. É um tempo de esperança.”

Voz potente da literatura infantojuvenil e da escrita sobre a diáspora africana, Cárdenas alcançou reconhecimento internacional e prêmios com livros como “Cartas para minha mãe”, em que uma garota negra órfã vai viver com a tia e prima. Vítima de racismo, ela se fortalece na escrita de cartas para sua mãe morta.

Iorubá no título

Também atriz, bailarina, roteirista e ativista, ela está lançando “Awon Baba” (Pallas), titulado pela palavra iorubá para ancestrais, que traz 12 relatos biográficos.

“A escrita é um ato político e também espiritual. Escrevemos e não sabemos de onde vêm essas histórias. E elas vêm de longe, buscando portadores e tradutores para chegar até nós”, disse Cárdenas, que leu um trecho do livro em que relata a história do senhor de pessoas escravizadas espanhol, em Cuba, que vendeu os próprios filhos, fruto de abusos das mulheres negras sob seu domínio, e “morreu tranquilo”.

“Essas são as raízes da identidade nacional em Cuba. De um lado, colonizadores espanhóis ferozes e assassinos, de outro, os africanos da costa ocidental, que sobreviveram como puderam depois de serem trazidos em viagens horrorosas nas quais lhes foi tirado o nome e as religiões, mas não a alma, que eles legaram para nós”, disse a cubana.

“Somos descendentes de sobreviventes, de gente que resistiu a tudo, e estamos aqui graças à resistência deles”, avaliou Cárdenas.

‘Há uma batalha em Cuba pela estética de origem africana. Uma conquista que estamos fazendo e que agora se espalha pela música, literatura, roupas e cabelo num movimento muito forte’

Teresa Cárdenas, escritora

Cida Pedrosa, duas vezes vencedora do prêmio Jabuti, leu trechos do livro “Estesia” (Cepe Editora), em que inaugura sua produção de haikai.

“Nasci no sertão e a literatura me veio pelo cordel, pela embolada, pelo homem da cobra que vendia coisas na rua e cantava. Não consigo separar a minha literatura da fala. Tanto que quando escrevo eu leio em voz alta: se a palavra não couber no meu ouvido, eu corto a palavra sem medo de ser feliz”, contou.

Cárdenas lembrou que Brasil e Cuba foram os últimos países das Américas a dar liberdade aos escravizados. “O racismo ainda é uma luta em Cuba, mesmo com o processo revolucionário de igualitarismo. Ainda estamos separados e ainda há muito o que fazer”, disse.

“Ainda que haja política de governo para lutar contra essas coisas, sinto que não se deixa que o povo preto se una o suficiente. É muito difícil e doloroso que, 130 anos depois, ainda estejamos sofrendo as consequências da escravidão.”

Fora do restaurante

Ela mostrou o videoclipe de um grupo de rappers cubanos, do qual participa, cuja música conta a história de cubanos negros que não são admitidos em restaurantes para dar lugar aos estrangeiros.

“Entendo que o embargo cria necessidade financeira, mas os cubanos negros querem estar presentes e exigir respeito”, disse, relatando a ascensão da afroestética cubana. “Há uma batalha em Cuba pela estética de origem africana. Uma conquista que estamos fazendo e que agora se espalha pela música, literatura, roupas e cabelo num movimento muito forte.”

A mineira Cidinha da Silva leu trecho de seu livro na Flip(foto: Walter Craveiro/Instagram Flip)

Cidinha da Silva defende a crônica

A  mineira Cidinha da Silva saiu em defesa da crônica literária, ao participar da mesa “Encruzilhadas do Brasil”, na Flip. “Ela é a prima pobre da literatura brasileira”, provocou.

“Quando a gente está no chão da sala de aula, na educação básica e no ensino superior, quem é que forma leitores? É a crônica. Então ela tem que estar na linha de frente da reflexão da literatura, porque está na linha de frente do elo da escola com quem lê”, arrematou o escritor, crítico e professor Christiano Aguiar, que dividiu a mesa com a escritora. 

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