De todas as imagens de Carolina Maria de Jesus, a minha preferida é a do aeroporto

Ela bem vestida, de cabelos livres, uma mala no chão, uma revista na mão e uma bolsa bonita, sorrindo, em frente a um avião da Air France no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, um voo que a levaria para o Uruguai para acompanhar o lançamento de seu livro “Quarto de despejo”

Fiz a viagem de volta, como dizem, Brasil-Angola, passando por Portugal. Mais de 30 horas de viagem que nem chegam perto dos dois ou três meses de travessia dos homens, mulheres e crianças levados de diversas partes do continente africano para o Brasil. A região do porto do Rio de Janeiro recebeu o maior número de seres humanos escravizados da nossa era. Bem no dia da minha chegada, assim que liguei a TV feliz de voltar pra casa, o programa da manhã da TV Zimbo lembrava que 23 de Agosto é o Dia Internacional da Lembraça do Tráfico de Escravos e sua Abolição.

Me emociona pensar que ser um corpo negro e livre para viajar era impossível há bem pouco tempo atrás. Viajar é das coisas mais importantes do mundo, mas não basta ser livre. Às vezes não sobra dinheiro pra ir nem pra cidade vizinha, eu sei. Reparo sempre no que chamo de: criança de aeroporto. Já reparou nas crianças da sala de embarque? Raramente param quietas, são falantes, expressivas, opinativas, na maioria das vezes falam mais de uma língua. São crianças que viajam… Veem o mundo, outras culturas, outras pessoas, outras formas de vestir, de viver, de falar. Na teoria que criei na minha cabeça enquanto esperava horas no aeroporto, crianças que viajam têm mais chances de ser adultos mais criativos, espertos, inteligentes, atentos, bem-sucedidos.

É claro que este não é um momento de viagens internas ou externas — porque nenhum protocolo poderá te proteger da Covid-19 a não ser estar em casa —, menos ainda dentro de um avião da TAP lotado. Mas e depois que tudo isso passar (eu creio!), quem poderá exercer o direito de viajar?

Bons tempos em que o aeroporto havia virado uma rodoviária porque os passageiros usavam chinelos e tinham sotaque nordestino, bons tempos… Hoje, o aeroporto tem em sua maioria mulheres, homens e crianças brancas falando francês, filas quilométricas, nenhum distanciamento, passagens caríssimas, dependência dos laboratórios de testagem PCR, atrasos, sobrecarga dos funcionários, desrespeito aos passageiros.

Esta parece até uma fala white people problems, mas sou só eu com saudades de ver um aeroporto cheio de pretos exercendo seu direito de circular pelo mundo.

De todas as imagens de Carolina Maria de Jesus, a escritora traduzida em dezenas de países, a minha preferida é a do aeroporto. Carolina bem vestida, de cabelos livres, uma mala no chão, uma revista na mão e uma bolsa bonita, sorrindo, em frente a um avião da Air France no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, um voo que a levaria para o Uruguai para acompanhar o lançamento de seu livro “Quarto de despejo”. A foto é de 1961 e dizem que ela era muito conhecida pelos funcionários do aeroporto por viajar frequentemente. Quantas mulheres negras pegavam um avião em Viracopos em 1961? É óbvio que ela seria reconhecida pelos funcionários; quando somos únicas, é mais fácil guardar o rosto. Todas as coisas escritas sobre Carolina deveriam ser ilustradas com essa foto. O verbete “sucesso” no dicionário deveria ser ilustrado com essa imagem.

Minha segunda viajante preferida é Letícia Santanna: amiga, turismóloga, espírito livre e preta. Ela nem sabe, mas, quando ela viaja, é como se eu fosse junto na mala, me contempla, me encanta, me inspira. Eu sei da força que Letícia faz pra manter a chama acesa, para não esquecer que o mundo é a sua casa. Por agora, apesar de aparentar que muita coisa mudou, temos na verdade retrocedido. Nunca fomos muitas, voltamos a ser raras, Letícias são poucas e Carolina, Carolina não viaja mais.

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