Cabelo veio da África
Junto com meus santos
Benguelas, zulus, jejês
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos
Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar
(Chico César)
Do UFJF
É sabido que quase quatro séculos de escravidão nos deixaram como legado um local dado e imutável no qual o corpo e o cabelo negro podem habitar, confirmando por meio de imagens e estereótipos os papéis sociais e culturais que a esses corpos eram reservados, trazendo estranheza e surpresa as imagens que visavam desconstruir essa lógica.
O processo de objetificação e desumanização do corpo negro, sem dúvida, foi um dos instrumentos de opressão e manutenção da ordem e do status quo da nossa sociedade, muito sabiamente utilizado para manterem esses corpos dóceis e adestrados a exercerem na sociedade os papéis e espaços que a ele estavam destinados e que se perpetuaram historicamente na dissociação entre trabalho intelectual e trabalho manual, na sexualização e coisificação do corpo da mulher negra, na relação de traços de selvageria, animalização e incivilidade do corpo negro, em contraponto ao corpo branco relacionado a traços de beleza, engenhosidade, inventividade e progresso.
A afirmação positiva do cabelo negro, crespo, etnicamente representado por dreads e tranças, portanto, é uma forte imagem de luta e resistência utilizada pela população negra desde as senzalas, é a afirmação de uma assunção étnica e construção identitária de uma negritude, é a expressão de uma ancestralidade e de uma memória que permaneceu viva na diáspora africana e que mantêm a sua raiz em África. Da raiz até as pontas evidencia a valorização e reconhecimento de uma textura, de um trançado que une os fios da vida e da memória como elos com nossos ancestrais. A cabeça para as diferentes tradições africanas e afro-brasileiras representa um forte elo com o sagrado.
Assim sendo, tocar a cabeça e o cabelo de um negro ou de uma negra, requer permissão, requer adentrar um tempo e espaço sagrados, que tanto fora profanado na história do nosso país.
Sabemos da rejeição que a imagem do corpo negro suscita nos diferentes meios e espaços da nossa sociedade, portanto quando a Universidade decide trazer a imagem desse corpo negro em uma campanha de fim de ano, já está demonstrando a sua intenção e o desejo de trazer à tona a desconstrução desse imaginário negativo com relação ao corpo negro na mídia, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Mas quando, embora sem intenção preconceituosa, utiliza a imagem de forma equivocada, reiterando imagens e estereótipos que visava combater, comprova que temos um longo caminho pela frente na superação de um imaginário cotidianamente naturalizado e entranhado de forma profunda nas nossas subjetividades, herança que a escravidão nos legou, reafirmando a necessidade que o tema das relações étnico-raciais e das teorias e racistas e antirracistas estejam presentes nos diferentes cursos de formação da universidade.
O que não podemos concordar é que o trabalho desenvolvido ao longo de tantos meses seja completamente desconsiderado por conta de um equívoco, que foi prontamente percebido e trabalhado, inclusive com a imediata retirada da campanha, e, assim agindo, a universidade busca dar uma resposta institucional e madura, pedindo sinceras desculpas e perdão a toda a sociedade pelo uso de uma imagem que trouxe à tona um imaginário negativo e combatido.
Desde as primeiras ações que a Universidade teve por meio da Diretoria de Ações Afirmativas, com o aval entusiasmado da Reitoria e a parceria direta de setores como a Diretoria de Comunicação, o racismo institucional foi prontamente compreendido, aceito e assimilado e diversas campanhas e ações foram pensadas e desenvolvidas no intuito de visibilizá-lo e combatê-lo.
Na campanha #ahbrancodaumtempo, a Universidade se posicionou institucionalmente assumindo o racismo existente na instituição com a própria Diretora de Ações Afirmativas segurando um cartaz com os seguintes dizeres escritos: “O racismo existe e a UFJF luta contra ele”. Em um evento na Universidade de Brasília, no qual estava presente uma das idealizadoras da referida campanha no Brasil, a UFJF foi parabenizada por ter sido a única instituição do país a dar uma resposta institucional de apoio à campanha.
A campanha: “Quantos professores/as negros/as você tem?”, buscou problematizar e responder, que sim, existem professores negros na universidade, mas que, infelizmente, ainda são muito poucos. Em um levantamento preliminar no contato com as direções das unidades a Diretoria de Ações Afirmativas levantou apenas 20 professores/as negros/as de um universo de quase 1.000 professores/as efetivos existentes na universidade.
As formações sobre esses temas com a Diretoria de Comunicação, de Segurança e as demais Pró-Reitorias e Diretorias foi algo pensado para ser realizado e executado como trabalho da Diretoria de Ações Afirmativas, com o auxílio de especialistas e pesquisadores sobre o tema, de relevância nacional e internacional. O “Mês da Consciência Negra” é mais um exemplo da vontade política que a universidade demonstrou em debater essa questão, tocando no ponto nevrálgico, nos pontos mais delicados onde esse racismo institucional está presente e tem um imenso impacto na vida da população negra, como por exemplo, as mesas-redondas realizadas que debateram o negro no cinema e a saúde da população negra e o racismo institucional no sistema de saúde.
Portanto, a pergunta de uma pesquisa realizada nacionalmente (“Onde você guarda o seu racismo?”) é extremamente pertinente para esse momento. Quando perguntamos em qualquer plateia: “Você conhece alguém racista?” e 90% responde sim, e logo em seguida perguntamos: “Você é racista?” e 90% da plateia responde não, percebemos que já passou da hora de todos admitirmos o racismo entranhado na nossa formação de maneira aberta, de não escondermos mais essa ferida exposta presente na sociedade brasileira, de admitirmos que erramos, mesmo que tentando acertar, mas de forma nenhuma e nunca mais, compactuando com o mito da democracia racial ou jogando para debaixo do tapete as discussões que urgem e que às vezes errando e às vezes acertando, jamais deixaremos de trazer à tona, retirando o véu da invisibilidade, do racismo e da opressão.
Por fim, reiteramos as mais profundas desculpas e o perdão à toda a sociedade, mas, principalmente, àqueles que através dos séculos tiveram a sua beleza, a sua estética, o seu corpo e a sua identidade negra subjugados pela sociedade racista, machista e homofóbica e prometemos ficar mais atentos e vigilantes para que não sejamos pegos de surpresa por essa formação, que embora combatemos, descobrimos que ainda se encontra entranhada em nossos corpos, mentes e corações.
Assim, o alerta que recebemos de movimentos e militantes antirracismo serve como mais um aprendizado, que temos que agradecer, incorporar e agir, refazendo nossa mensagem de Ano Novo.
Carolina Bezerra
Diretora de Ações Afirmativas
Rodrigo Barbosa
Diretor de Comunicação
Marcos Vinício Chein Feres
Vice-reitor no exercício da Reitoria