De trajetória pessoal conturbada, Lonnie Holley foi das esculturas de lixo às canções de uma América desprezada

Foto- Timothy Duffy : Divulgação

Artista de 68 anos desponta na música com o disco ‘MITH’

por Silvio Essinger no O GLOBO

Foto- Timothy Duffy : Divulgação

O título da reportagem publicada no começo do mês no jornal inglês “The Guardian” era bombástico e categórico: “Vinte e seis irmãos e um campo de trabalho infantil: como a vida épica de Lonnie Holley levou ao melhor disco do ano.”

Lançado no último dia 21 pelo selo indie americano Jagjaguwar, “MITH”, terceiro álbum do cantor e pianista nascido há 68 anos em Birmingham, no Alabama, de fato surpreende. Em canções que parecem seguir fluxo de consciência, ouve-se uma bela voz, entre soul e blues, cantando linhas principais e fazendo contracantos fantasmagóricos por cima de um piano e outros poucos instrumentos.

“A minha música não é feita para levar as pessoas à guerra, mas para que elas cheguem a um melhor entendimento da situação”Lonnie Holley Músico

Sentimentos aflorados

Com um misto de júbilo e desespero, as músicas do disco falam de loucura, escravidão, espaço, morte e Estados Unidos, podendo provocar desde a pura e simples comoção até um arrepio na espinha.

— Eu quero que as pessoas sintam a realidade — explica, por telefone, Lonnie Holley, em sua primeira entrevista para o Brasil. — A minha música não é feita para levar as pessoas à guerra, mas para que elas cheguem a um melhor entendimento da situação. Tem que ouvir as músicas mais de uma vez. Acho, aliás, que leva pelos menos um mês para elas serem digeridas.

O primeiro indicativo do choque a ser provocado por “MITH” foi o lançamento do single “I woke up in a fucked-up America” (”Acordei em Estados Unidos fodidos”, em tradução livre). É uma das faixas mais ameaçadoras do disco (ele implora na letra: “Tire-me desse sonho!”), que ganhou um videoclipe no qual o cantor é cercado por algumas das obras de arte que ele criou a partir de objetos recolhidos no lixo.

— Não é por causa desse novo governo que nós estamos fodidos — avisa Lonnie. — Eu estava pensando nos meus pais, nos meus avós que viveram em outros tempos fodidos. Quantos deles não tiveram dinheiro para comprar lápides para as tumbas de seus parentes? O que eu queria com a canção era pintar um retrato que as pessoas possam olhar quando não estivermos mais aqui.

O cantor, compositor e artista plástico americano Lonnie Holley Foto: Timothy Duffy / Divulgação

Cabe aqui um detalhamento da vida que gerou essa obra: negro, miserável, um entre 27 irmãos, Lonnie Holley passou a infância de mão em mão, foi trocado certa vez por uma garrafa de uísque, trabalhou em várias funções, ficou em coma após um atropelamento e acabou indo parar num reformatório rural onde colheu algodão (sempre cantando) com outros jovens.

Em 1979, uma de suas irmãs perdeu dois filhos pequenos num incêndio, e ele esculpiu lápides em arenito para que as sepulturas das crianças tivessem uma identificação — isso iniciou um processo de descoberta artística que o levou a fazer outras obras com o que encontrava na rua: guarda-chuvas, arame, canos, câmeras antigas, madeira e crânios de animais.

Obra de arte de Lonnie Holley Foto- Divulgação

As esculturas foram se acumulando até que ele conheceu o colecionador de arte Bill Arnett, que começou a defender seu trabalho como o de um expoente da arte afro-americana e conseguiu que peças fossem expostas pela Smithsonian Institution — algumas delas passariam, mais tarde, pelas Nações Unidas, pelo Metropolitan Museum de Nova York e pelos jardins da Casa Branca.

O mesmo espírito improvisado de suas obras de artes plásticas, Lonnie passou a empregar à música. Mas só começou a gravar suas canções em 2010, depois que consertou um teclado eletrônico de segunda mão que tinha em casa e costumava tocar como autodidata.

Gravação em Portugal

Nesse mesmo ano, Matt Arnett (filho de Bill) viu uma performance musical de Lonnie Holley e decidiu gravar um álbum dele: “Just before music”, lançado em 2013. Ele se tornou empresário do cantor e o responsável por ele ter iniciado “MITH” durante uma passagem pela cidade do Porto, em Portugal.

— Um cara que estava nos ajudando no festival em que ele se apresentava conseguiu que usássemos um estúdio. Lonnie nunca canta uma canção do mesmo jeito, mas ele tem ideias que ficam voltando. Era uma época em que estavam acontecendo várias coisas no mundo e, de repente, ele estava cantando todas aquelas canções bonitas que decidimos documentar — conta Matt, que acompanhava Lonnie na entrevista.

Uma das canções, “I snuck off the slave ship” (“Eu escapei do navio negreiro”), acabou entrando em “MITH” em versão integral e arrepiante, de quase 18 minutos.

— É uma canção sobre a nossa aventura como seres humanos e sobre como ela se organizou na minha imaginação. A música começa comigo na África, com meus ancestrais, e vai até os dias de hoje. O que eu tentava encontrar ali era um sentido completo para nossas vidas — conta Lonnie.

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